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Massacre no Km 13, de Hélio Pólvora — Parte 02

Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"Prefiro a lucidez que me corrói e me dilacera e me engrandece"


"Minha filha mais velha na cama com ele, penetrada pelo padrasto. Mas minha gente, meu santo, meu Deus do céu, isso não existe, isso não é coisa que se faça! A gente ouve dizer e não acredita. E, no entanto, agora, agora mesmo, daqui desta cama, eu sei que os corpos do homem e da menina, da menina-moça de peitos ainda nascentes, vão se achatar, se grudar, o homem por cima, aquele homem esmagador, aqueles músculos de granito, aquele aperto de tamanduá"


"Esta cidade. O aperto. Esta cidade. Seios e traseiros nos altares, nas procissões, nas ladeiras, nas casas de família. Carnes em expansão contínua, cogumelos. Apertadas ou frouxas, balouçantes, tremelicantes, sacudidas, tão desenhadas, abaixo da linha finíssima da cintura, como a parte inferior de certas formigas gordas no inverno. Tanajuras. Esta cidade, um formigueiro espalhado na encosta, fremindo, fremente e fervendo. Madura, quente com o doce e polpudo pomo do verão, um travo de acidez que só encontro nos cajus, nos tamarindos, nas laranjas do Cabula e nas mangas de Itamaracá. O aperto, o aconchego, todo mundo na procissão do sexo, na penitência do sexo, falos ornamentados de roxo e vaginas envolvidas em panos brancos, alvíssimos, entronizados nos altares, carregados nos ombros dos devotos. Esta cidade, a minha cidade. O meu canivete. Todo o meu amor, Bahia"


"Minha casa parece um chiqueiro, e olhem que sou o pai, o chefe de família, o homem que cava a vida, faz dinheiro, garante o sustento. Chego da rua suado, cheio de aperreações, preciso de um banho. A toalha está úmida. Úmida uma ova: encharcada. No sabonete há fios de cabelo (ou pelos de que regiões?) encravados. O chuveiro está entupido, caem apenas fios irregulares de água. Calcinhas penduradas, calcinhas no chão, sutiãs guardam o odor concentrado de suores, corrimentos, excrescências. Merda. As paredes estão encardidas. Na geladeira nem uma fruta. Já comeram a melancia enorme que comprei três dias atrás? E onde está que não vejo o amarrado de cajus? Depois, a mulher ainda reclama se fico até tarde no bar de Carneiro, jogando pôquer de dados e bebendo cerveja. Às vezes tenho a impressão que esta casa não é minha, não me pertence, não foi construída, tijolo a tijolo, com o meu suor. Destroem tudo"


"Ele é o meu homem. E como pensa em foder. O meu porco, o meu canalha (...) Uma noite, recordou, no início da nossa relação, ele conseguiu me fazer gozar muito. Tive um orgasmo violento, gritei. E depois, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, manchando a pintura, eu prometi lavar as meias dele, prometi passar a roupa dele a ferro e disse: eu sou a sua puta (...) Para algumas mulheres, ela pensou, o orgasmo é a busca do Santo Graal, como diz aquele horóscopo realista de um tal Igor Petrovsky, que comprei outro dia na banca de jornais. Eu, Lady Godiva. Eu, a vestal em busca do Templo perdido. Eu. Eu. Eu. Animus et anima"


"Veio o café. Mais um sinal para que acendessem novos cigarros e se olhassem de maneira muito casual, e trocassem palavras e comentários banais, desses que logo se esquecem, e matassem o  tempo, ali um diante do outro, sem ter muito o que dizer, à espera do momento de sair, entrar no carro, voltar ao apartamento. Onde ela, deitada na cama larga, de florido lençol por ele comprado num supermercado (...) olharia o teto, cravaria no teto os olhos de verruma, perfurantes, e, quando cansada de mirar o teto e de coçar a cabeça e de pensar em tantas coisas, se levantaria para abrir uma revista ao acaso, olhar ilustrações, folhear um livro, fazer uma discagem direta a distância. E onde ele, com o cobertor puxado até o pescoço, ou o meio do peito, dormiria ou fingiria dormir, como se devolvido, na umidade gotejante da tarde, ao quente útero da vida em gestação"


"O menino que masca fumo, depois de cochichar com Ciríaco, vai ao armazém e volta com uma marreta e um cepo de jaqueira ainda verde. O garimpeiro se pega com todos os santos, pede pela minha mãe, pela luz que me alumia, pela felicidade de meus filhos. Eu tenho nada com isso? Falei com Ciríaco, dei carta branca a ele, por causa de Do Carmo, que nem pode andar, esfolada por dentro e por fora. Puxam a calça do garimpeiro, sujeitam o homem, põem os bagos em cima do cepo e afastam a rola.
— Vi capar muito garrote assim, no sertão — diz Donga.
Ciríaco levanta a marreta.
— Esfarelou — diz Joana.
Por hoje chega"


"— Regina? Pensa que eu estou bem? Sabe há quanto tempo eu não beijo uma mulher, não abraço uma mulher? Dois meses.
— Sinto muito, Mário. Sinto mesmo. Você me perdoe.
— Perdão é o que todos querem.
— Escute, Mário, isso não pode continuar assim. Saia, arranje mulher.
— Como?
— Uma prostituta. Não arranje mulher direita, namorada sua, porque assim eu teria ciúme. Mas com uma mulher de rua eu não me importo. Já que não estou dando assistência a você, eu concordo. Pegue uma mulher dessas, dê uma trepada de vez em quando"


"Arre, a filha não é só minha, eu apenas pari, e não foi por obra única do Espírito Santo. Se ela não tem juízo, se não conhece o seu lugar, se é uma assanhada que não distingue homem, que se envolve com quem não presta, cabe ao marido, ao chefe da família, fechar a cara, encerrar o escândalo, cortar o mal pela raiz antes que seja tarde, antes que a vizinhança comece a digerir prato tão suculento"



Trechos presentes no livro de contos "Massacre no Km 13" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.

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