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Noites vivas, de Hélio Pólvora — Parte 01

Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"Que é, afinal, um filho?, pergunto à minha braguilha, à cinza do meu cigarro. Um filho, me responde o remoto suco que percorre minhas glândulas, é apenas uma manifestação de orgulho. Nele pretendes realizar o que quiseste ser, mas não foste e que nunca serás. Um filho é uma clamorosa inutilidade. Pões nele o egoísmo de uma permanência na face da Terra, mas dia virá em que ele te olhará de frente e perguntará: por que nasci? Ou, então, concluirá irritado: afinal, eu não pedi para nascer. E assim ele condenará a tua e a sua inutilidade"


"Tenho o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia"


"Eu sempre considerei o mar ótimo interlocutor, porque me ouve com paciência, de quando em quando me dá trela. Em geral, confio minhas mágoas ao mar, ele me ouve calado e arqueia o dorso em sinal de solidariedade. Os interlocutores humanos ouvem apenas suas vozes interiores, nos atropelam e fazem ouvidos de mercador quando queremos interpelar. Não permitem, também, orações intercaladas"


"Descemos à porta da igreja, importantes e solenes como homens que se prezam, e entre os quais destoava a languidez da noiva, ausente e meditativa como uma testemunha indiferente, não a personagem principal. E assim ela permaneceu durante a rápida cerimônia em que duas criaturas se unem para o bem e o mal, o tempo exato para o padre dizer algumas palavras que não entendemos, para a noiva dar o seu consentimento, mais com um suspiro do que com a voz tirada do solfejo da garganta, e para o noivo enfiar, no dedo da mulher, o anel que os aproxima ou que a partir daquele momento os distancia e os embrutece"


"Todas as mulheres possuem no baixo-ventre, na região das virilhas, a conveniência de um talho por onde os seus filhos costumam sair espremidos como a cabeça de um tumor e receber o primeiro choque da vida, que é a claridade. Por que este demora tanto? Teria crescido desmesuradamente ou, na ânsia da libertação final, inteiriçou braços e pernas, enovelou-se à porta do seu conduto?"


"Sou um estranho no lugar ainda pequeno, o forasteiro que chega para fechar negócio escuso, visitar parentes, roubar mulher moça, talvez matar um velho inimigo a tiros. Comércio apagado, disperso, sobretudo durante as horas de forte incidência do sol. Uma praça em que o sol projeta no cimento sombras raquíticas de árvores enfezadas; casas grudadas entre si, na mesma imaginação pobre de uma porta e duas janelas, como se servissem de amparo para continuar de pé, na guarda do sigilo de homens e mulheres enfurnados (...) Se eu quiser atrair ainda mais a novidade dessa gente, não pedirei informações. Depois de errar uma hora por becos e ruelas, traçando um círculo e alargando-o em volta da praça, darei com a casa de Justino de Palestina, tão certo quanto já prenuncio meus gestos ao chegar: primeiro, arrastar os sapatos no cimento, para me livrar de alguma provável bosta de boi, em seguida bater palmas. Pena que as poucas pessoas surpreendidas às portas e janelas já me estejam olhando demais, com tal fixidez que me transformam, de súbito, em comparsa de mim mesmo, dando-me a consciência aguda dos mínimos gestos, movimentos e vacilações. Decido ir logo à farmácia para orientar-me com o compadre de Justino. Em meia hora de conversa ficarei sabendo, com certeza, o que já sei, mas a experiência me ensinou que as interpretações pessoais dos fatos são mais ricas — quase sempre mais verdadeiras — que os fatos na sua corriqueira rotina humana"


"Investir tempo e amor em estudante pobre é investir nas cotações mais ínfimas da pobreza"


"Certas mulheres, quanto mais finas de casta, mais parecem moles na hora da agonia. A minha é assim. Jamais pude conceber que o seu ventre pequeno e batido, de uma carne esbranquiçada que se arrepia ao contato de minha barba, quando eu ali encosto o ouvido, como se encosta o ouvido à terra a fim de surpreender palpitações germinativas, pudesse preservar, durante nove meses seguidos, a marca de minha contaminação. O parasita que dentro dela se encorpava sugou-lhe a gordura do rosto, o sumo dos olhos, o suco das glândulas, o açúcar do sangue, o mel da boca e a fortaleza escarpada dos peitos, concentrando na barriga, como numa poça de lama, todas as suas efervescências vitais. Meu Deus, pensei, desesperado, é melhor que ela tenha um cão, talvez dois. São mais fáceis e mimosos, e eu gosto muito de cães"


"Quando, numa tarde próxima, ele chegou sem aviso e apeou-se, estando o pai em casa, ela se preparou num frêmito para ser colhida, arrebatada e violada. No desfalecimento daquele instante, sentiu um suco aflorar e espalhar-se como pingos de chuva sobre as pétalas encolhidas de sua protegida flor carnuda. 'É agora, ai. É agora'. O Forasteiro amarrou com deliberado vagar o cavalo no moirão. 'Vim lhe pedir', disse. Ela não respondeu. 'Vim pedir a sua mão'. 'Não quero'"


"Pode seguir o trilho do bonde, preferir a Baixa dos Sapateiros, subir o Pelourinho, alcançar a Sé. A cidade é íntima, aconchegante. Se desaba uma chuva, uma pancada comum nos prolongamentos do verão, todos correm para as marquises, ali se misturam estudantes, moças do comércio e homens que transformam os braços em cabides de guarda-chuvas novos, oferecendo a mercadoria em redor; vendedores de pentes, lâminas de barbear e pornografias, mulheres de pequenos industriais, fregueses de gravata que aproveitam o contratempo para manusear discos, peças de fazenda, objetos de louça. Todos unidos, apertados, a sexualidade grupal da cidade descontraída (...) quando a chuva parar, debruçar-se simplesmente nas amuradas junto do Elevador Lacerda, estender a vista para a cidade que, no sopé da montanha, coleia — uma sujeira de telhados engastada na oferta do mar verde-garrafa"


"O fato é que, quando entrei de novo em casa, iam adiantados os preparativos para a noite de sono. Meus irmãos já se haviam recolhido aos seus quartos; apenas uma lamparina de globo enfumaçado ardia na varanda, criando ao seu redor, na escuridão circunjacente, um halo de luz semelhante ao de um farol fixo que assinala no ermo a solidão de uma alma ou o convívio aconchegante de criaturas humanas"


"Turco, de cauda erguida e modos ariscos, era agarrado pelo pescoço, conduzido a muque até o alpendre onde ciscavam os patinhos. Encarado com sua futura vítima, tornava-se lânguido, arredio, forcejava por escapar. Humilde, encolhido, cara de nojo, todo ele constituía naquele momento uma negativa formal, uma declaração cabisbaixa e contrafeita de inocência ou arrependimento. O patinho lhe era esfregado no focinho. Uma, várias vezes. Turco nem sequer abria os dentes, o faro teimava em não fazer o reconhecimento, as patas recuavam no chão de terra dura, procurando firmeza para escapar. Esforços vãos: a mulher tinha-o seguro, e bem seguro, o pedaço de couro que lhe pendia da mão prometia dores próximas. 'Conheceu, canalha? Isto aqui é um pato. Pato não se come'"



Trechos presentes no livro de contos "Noites vivas" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.

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