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Estranhos e assustados, de Hélio Pólvora — Parte 01

Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"Distâncias significam chamados. E ai de quem não os atender: ficará sob forma de pendência, pelo resto da vida, o caminho que não foi trilhado, a chegada que não se consumou"


"Nós nos olhamos como duas feras indefesas e, no entanto, propensas ao ataque. Um homem e uma mulher que se encontram e se arrimam na queda, iguais a duas pedras na encosta. Ela levanta a saia. Está pronta. Estava pronta. Neste mundo até as pedras se aconchegam, se acasalam; basta rolar, haverá sempre o desejado empecilho (...) Viramos e reviramos no catre, duas pedras macias, crespas e rijas, mornas. Pedras. Atrito e carinho (...) Margarida passa por mim de olhos baixos. Faz questão de não me ver, as pedras se soltaram para outra vez rolar sozinhas. Assim é, decerto assim será (...) Margarida entra num automóvel preto. Não olha uma só vez para trás. Estou condenado a despencar, a despencar como pedra solitária, encosta a baixo. Não sei quem ou o quê me deterá"


"Às vezes o homem obstinado aparecia de calção à porta da rua — e quando os olhares convergiam para si, quando homens e mulheres cessavam os afazeres em suas casas e se punham a olhá-lo em muda indolência, ele entrava no rio, nadava até o meio da correnteza e ali opunha o peito, como um dique, ao ímpeto da enchente; e, meia-hora depois, retrocedia à ribanceira, encarava homens e mulheres e lhes dizia, apontando o rio: — Nem ele nem eu"


"Leio versos compridos que narram façanhas de Lampião. Aquele sim, tinha tutano, sangue quente. Adiantou? Mas também o que adianta não tentar? Sirva-se, homem, ponha a vergonha de lado. A vida é um prato de comida que umas vezes lhe empurram, outras vezes lhe negam — e você tem de buscar"


"Admirava-se cada vez mais da facilidade com que a espécie mulher vê antes de ser vista, percebe antes que a sinalizem. E nelas não há olhar mais devassador do que o olhar de banda ou de soslaio. Seguem em frente, aparentemente altivas e sobranceiras, mas veem dos lados e atrás. Periscópios? Talvez. Todos elas antenadas, as mais desprovidas recorrem ao retrovisor invisível que o sexo lhes deu. É natural, precisam defender-se da presa e açular a fera"


"O coronel seu pai, metido num terno de brim quadriculado, o paletó mal sobrando para se fechar no ventre e mal atingindo a cintura, passeava nas calçadas, de mãos trançadas nas costas — aquela cidade que ele, quando menino, ajudara a fundar. O olhar se dirigia instintivamente para os armazéns que cheiravam, principalmente no fim das tardes e durante as noites, que é quando os cheiros bastardos das ruas se dissipam para que predomine o cheiro penetrante, doce e amargo, mistura de suor e lágrimas — o cheiro balsâmico do cacau, que está em nós, perfume dos nossos corpos, incenso de almas. Pois o coronel tinha naqueles armazéns pilhas de cacau seco, montes escorregadios de lisas amêndoas que desmoronavam a qualquer sopro ou movimento"


"Uma ilha é um refúgio cercado de água e espantos por todos os lados, e quanto mais isolado, tanto melhor. Talvez a nossa seja a última ilha sem amarras — aquela que preferiu ancorar por si própria longe dos muitos aglomerados do Continente. Somos pescadores, apenas pescadores, como aqueles do Mar da Galileia. Ciumentos da nossa Ilha, e da paz que aqui reina, queremos aqui envelhecer sozinhos, como os frades do Farol, e sermos sepultados no cemitério de areia, onde é mais fácil cavar os sete palmos"


"Distâncias. Aqui no sul da Bahia as distâncias se desdobram, parecem virgens, escondem segredos a descobrir sob os panos das névoas ou sob o brilho ofuscante do sol — ou ainda sob o crepe da noite baixa"



Trechos presentes no livro de contos "Estranhos e assustados" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.

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