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Massacre no Km 13, de Hélio Pólvora — Parte 01

Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"O diabo é que estou sempre querendo a mulher que não tenho, a mulher que não vejo — ou a outra, a que perdi"


"O farmacêutico tem fama de sedutor, só lhe interessam as virgens, e uma vez arrancada a pétala daquela flor rara desabrochada na estufa das coxas, ele se distancia, consegue fugir à responsabilidade, pensa em outra — e se for acuado, paga em dinheiro a honra colhida. Agora segue de longe, com olhar avaliador, a moça que passa, enquanto coça o baixo-ventre"


"(...) cidade apinhada onde corpos se tocam, se roçam, se esfregam, a cidade altamente grupal, ruas sempre entupidas, suores, mistura, aconchego e agonia, a cidade que só se esvazia quando cai uma chuva forte, de um dia inteiro, de três dias seguidos. Então, com as ruas alagadas, transporte escasso, aquela gente toda, brancos, pretos e mulatos, parece desaparecer como por milagre, entrar nas casas e nos apartamentos, sumir como ratos molhados em tocas (...) Caí no mundo. Caí no oco do mundo. Entrei nos apodrecidos intestinos da cidade e me misturei com a merda nas ruas, nas calçadas, nos jardins públicos. Senti o odor forte da urina a céu aberto. Cagalhões nas esquinas, ressequidos ou frescos, regatos de urina lentos a rolar nas manhãs de carnaval"


"Ciríaco sopesa os culhões do garimpeiro e mira, com a quicé, o rego, isto é, aquele cordãozinho de carne rosada entre os dois ovos.
— Meu Padim Ciço — grita o garimpeiro.
— Acho que este aí é do Ceará — diz Donga.
O sangue espirra, escuro. Joana solta uma risada nervosa. Não sei porque as mulheres gostam de ver capar boi, capar cachorro, capar frango, essas coisas"


"Quando ele demorava a chegar de suas noitadas na cidade, com toda certeza em casa de mulheres-damas, eu via pela frincha da janela coar-se uma réstia de luz acinzentada. Somente olhos experimentados como os meus e nos zelos do ciúme sem remédio poderiam descobrir a madrugada em formação. Eu me assustava. Tão tarde assim?"


"— Como eu ia dizendo, Do Carmo trazia uns panos que eram pra roupa nova dos meninos. Vinha pelo meio da estrada. De repente, ao sair daquela curva antes do km 13, avistou os garimpeiros e, medrosa, de olhos baixos, como convém a mulher casada, começou a caminhar pela valeta. Mesmo assim, um garimpeiro puxou-a pelo braço. Ela se soltou com um safanão. Adiante, outro arrodeou Do Carmo pela cintura. Aí foi mais difícil ela se livrar.
— E depois? — perguntou Donga.
— Deram uma geral nela, sim senhor.
— O quê?
— Uma geral — eu explico a Donga — é uma porção de homens se servindo de uma só mulher. Botando em todos os buracos. E rindo do choro da infeliz.
— Isso mesmo — diz Ciríaco.
— Arre, que diabo — diz Donga"


"Aonde ir, para onde ir, o que fazer, a quem encontrar, a quem recorrer? Em quem despejar, em suma, sob a forma de um líquido viscoso, essa agonia que me queima? (...) A salvação da família brasileira está nas pequenas cidades do interior. Quanto menor a cidade, menos sujeita ao fenômeno, já detectado por psicólogos e outros, da desagregação familiar. Sim, aqui nesta cidadezinha à beira-mar, tão exposta aos ventos que deixam em seus edifícios manchas de maresia, todos devem ser casados, todos chegam em casa cedo, vestem pijamas ou camisolas, jantam e se sentam diante do televisor; e depois, com um bocejo de desgovernar o queixo, convoca-se a mulher para a cama. Bendita existência. Aqui não há lugar nem vez para putas. Pergunto a um motorista de táxi, eles sabem de tudo (...) O homem me indica um bairro, uma casa determinada"


"Puxo a coberta sobre os peitos. Fora sussurra o vento. Fecho os olhos que só enxergam o escuro e chamo o sono. Não quero ver ele na cama com a outra, o seu jeito de se atirar sobre a fêmea sem preparativo, cego e certeiro, abrindo o ventre a coices para depois largar no fundo uma multidão de germes"


"Foi um pouco depois, porém, ao visitar uns compadres em Cachoeira, a Heroica, que tive a ideia. Corri numa praça, acho que a da Aclamação, onde tem um chafariz do século passado, um sobrado antigo, enorme; quem sabe se não pertenceu a descendentes do fidalgo lusitano Paulo Dias Adorno, fundador da cidade e construtor da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda? Pois o que mais me impressionou no casarão, além de uma escrivaninha com fundo falso, onde o patriarca guardava patacas e patacões, foi na parte de cima, subindo uma escada de madeira rija, os buracos na parede grossa de fortaleza. Não eram redondos, como os do navio, mas quem olhasse por eles via quem passava na praça embaixo e ninguém na praça enxergava o vivente atrás do tal buraco... Enfiados nos buracos da fortaleza do fidalgo, os arcabuzes devem ter cuspido muito fogo. Mandei fazer igual aqui em casa, o pedreiro até que caprichou"


"A Ladeira de São Bento dança, invertida, como se um anjo gordo e grande, um anjo nu, um anjo preto de Emmanoel Araújo carregasse nas costas a Cidade do Salvador, e de repente o céu fosse o chão, as ruas estivessem no lugar do céu. Como na brincadeira do espelho. Alguém (pelo forte cheiro de suor é homem) o segura pelo meio, a parte de cima de seu corpo se dobra, parece que a espinha vai se partir. Outra pessoa lhe ampara a cabeça. Agora está melhor, tem vontade de se recostar e dormir pra acordar descansando em dia de sol, sem nada pra fazer, praia e mar, sol e mar, cheiro de peixe, vislumbre de vela de saveiro, lambretas em mesa de botequim sujo onde esvoaçam moscas impertinentes"



Trechos presentes no livro de contos "Massacre no Km 13" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.

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