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Estranhos e assustados, de Hélio Pólvora — Parte 02

Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"Ele trazia a cara de cavalo esticada e impassível, com o jeito orgulhoso de quem decidira voltar — e soubera voltar. Não desviava a cabeça para os lados; olhava à frente, como se no seu entender o mundo se resumisse a uma estrada, uma linha reta traçada para que ele a percorresse com os pés descalços e as botinas penduradas na mão, até que a morte surgisse e o fizesse tombar com o baque pesado de um cavalo — ou de um cedro"


"O demônio da solidão, porque até nas maiores calmarias ele reina, senhor absoluto da terra, atingia-o em cheio. Ai, ai, ai, queria gemer e sentia vergonha do vexame. Era mesmo o pior dos homens, a quem faltava companhia subserviente de cães, mas detestava bichos e gentes que a ele se apegassem, dispostos ao naufrágio conjunto. Ai, me larguem, costumava pensar, e ria da bravata. Me deixem afundar sozinho, que me recuso a levar mais remorsos"


"Ideias tolas previnem emboscadas, muita gente dá cabo de si própria por preguiça ou esquecimento de encompridar e afundar o olhar (...) se bem regulado e prestativo, com aquela penetração aguda e instantânea de binóculo, aciona o sobreaviso, prolonga a vida"


"Farejava a morte com o focinho longo, as ventas amplas recolhendo odores de carne deteriorada, nos olhos antes faiscantes um brilho mortiço de velas. Não se enganava; mal a família vertia as primeiras lágrimas, Papa-Mel aparecia na casa. Entrava sem pedir licença, descobria o rosto do morto, com uma satisfação pasmosa, depois fechava-lhe os olhos, sereno e grave, com a ponta do indicado ossudo em que se agigantava a recurva unha negra. Banhava o morto, vestia-o para o sepultamento. Demorava-se o mais possível, um brilho místico nos olhos e um tremor nas mãos, a boca aberta mostrando dentes amarelos e afiados. Acompanhava o enterro de cabeça caída no peito e mãos cruzadas no ventre. As lágrimas, grossas como pingos de chuva, desciam à barba ruiva; entrelaçadas nos fios da baba, teciam cristalina teia. Tornou-se logo sinal de mau augúrio. Quando parava, ou simplesmente rondava a porta de um enfermo, a família benzia-se (...) maldições choviam sobre ele, às vezes súplicas (...) mas Papa-Mel não saía de perto. Sentado no meio-fio ou numa pedra, esperava o doente morrer. O diagnóstico não falhava nunca"


"A maldade se nutre de paciência"


"Porque havia adquirido um miado fino, longo, penetrante como uma punhalada (...) Aquele miado sobressaltava, mesmo quando esperado, e feria, juntamente com os tímpanos do homem, os labirintos mais acústicos da noite em que ambos, homem e gato, encalhavam"


"Partiu com o ar de quem concentrara o orgulho na fuga longamente premeditada (...) Adamastor não voltou nem mesmo quando lhe mandaram dizer que o pai, lavrando um tronco de vinhático na mata, enterrara o fio do machado no pé, cortara uma das veias inchadas e azuis. E não demonstrara maior emoção, a não ser por uma fugidia palidez que lhe banhou o rosto, ao lhe dizerem que o pai perdera muito sangue e conseguira chegar por um milagre de força e obstinação à casa mais próxima, onde lhe apertaram um pano sobre a veia e lhe estancaram o líquido quase negro e grosso que borbulhava no seu corpo pequeno e enrugado, querendo sair todo pela ferida aberta a fim de empapar a terra e se pacificar; via-se a cicatriz no pé que ele fazia girar à volta do tamborete. Uniu os beiços como se fosse soltar um assovio, mas não emitiu som algum. Por fim, fixando o olhar nos punhos da rede que se esticavam nas argolas, comentou: — Adamastor está ganhando bem"


"A silenciosa e débil tropa está a caminho, carregada, e no seu desfilar lento, enfumaçado, parece fragmentos de névoa, espectros de almas penadas. Nos traiçoeiros caminhos reais cheios de pontilhões, muito burro despenca na água enlodaçada e tenta sair aos arrancos, aos coices, aos corcoveios. Mas a carga os empurra para baixo. Nesses casos, o tropeiro desce e retira a carga para salvar o animal. Ou em último remédio larga o animal no viscoso aperto da lama"



Trechos presentes no livro de contos "Estranhos e assustados" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.

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