Pular para o conteúdo principal

Recordações de andar exausto, de Mayrant Gallo

 
Mayrant Gallo
Foto: Ricardo Prado | Arte: Mirdad

Mayrant Gallo é um dos escritores que mais admiro. Mais que isso, é um crânio soberbo, pensador e pesquisador das artes, um tera-HD repleto de cultura e memória. E a cada instante que a roda da vida permite um encontro, usufruo ao máximo, um confesso e declarado humilde discípulo. Sou grato à sorte por ter acesso a esses gênios de fato. E não são poucos. Queria poder uni-los, a pensar e gargalhar sobre essa existência tão escorregadia.

Abaixo, seguem as pílulas do livro de poemas “Recordações de andar exausto” (Aboio Livre, 2005), de Mayrant Gallo.


"O lado vazio da cama
É a presença humana
Que mais atemoriza"


"queremos certeza
e o que temos são estrelas
por sobre a cabeça"


"Todos meus poemas
Não mais me pertencem.
São de quem os sente"


"A memória falta. E que falte.
É uma sorte. Minha, sua,
De todos. E que um dia
Cheguemos a desconhecer
Uns aos outros"


"Que pus eu nesta vida,
Senão livros que um dia,
Outro dia,
Ninguém lerá?"


"A vida nos frustra,
E não há fuga.

Nenhuma"


"Sua calça jeans estalava
Quando ela se sentava.

(...)

Um dia dois caras brigaram
Por causa de suas axilas...

Eles estão mortos.
Ela viva"


"Um minuto de poesia
Não bastaria
Para o mundo.

Mas se o mundo parasse
Um minuto
Bastaria um segundo"


"Uma menina disse, mais tarde:
– Salvem-me...
Mas ninguém entre os homens
Quis salvá-la...

A menina enforcou-se.

Ao saberem, os homens
Foram vê-la pendurada"


"Um poeta e crítico me disse
Que não gosta de minha poesia.
Sim, e daí?

(...)

Não me digam o que já sei
Ou então aquilo que nada muda"


"Ninguém é livre.

(...)

Há prisão na própria espécie.

(...)

Na intenção diante das palavras.

Livres são as horas"


"Não, a vida não pode ser isso.
Se olho para a frente – enigma.
Se olho para trás – vidro"


"Aos dezesseis, descobriu fotografias
De uma mulher que não sua mãe
E jurou ferrar o pai...

Aos dezoito,
Era ela quem estava na cama,
No lugar da mãe"


"O tempo nos mata
Tal faca que nos corta
(...)
E não posso voltar atrás,
Não posso tornar a nada:
Mais cedo serei pó,
Mais tarde, água"


"A cada alto relâmpago
Vive-se novo sonho.

Mas o trovão avisa
De seu peso homicida"


"Só sempre, recortado,
Vi muitas vezes
A noite escoar-se.

(...)

Ainda estou aqui
E ainda aqui sonho-me"


"Os mendigos fedem.
A vida fede.
Só o universo,
Para além das nuvens,
Perece
De uma limpeza inerme"



Presentes no livro de poemas "Recordações de andar exausto" (Aboio Livre, 2005), de Mayrant Gallo, páginas 78, 71, 37, 91, 61, 11, 95, 33, 24, 93, 14, 92, 96, 90, 68, 43 e 83, respectivamente.

Comentários

Mayrant Gallo disse…
Emmanuel, meu amigo, obrigado. Você realmente leu meu livro, e eu agradeço por isso. Também esta homenagem. Você é de uma gentileza sem par. Precisamos nos ver mais vezes para adiantarmos estas conversas de livros e filmes. Quanto à foto lá em cima, o crédito é: CosacNaify. Abraço forte! Mayrant.
Anônimo disse…
Da prosa e poética mayrantiana, ainda virão mais e mais farturas desse quilate. Por ora, resta-nos quitar nossa dívida com o mestre, da qual não cansaremos nunca de pagá-la. Abraços.

Thiago Lins
Georgio Rios disse…
Clap! Clap!!! também faço coro aos sinceros elogios dos amigos acima.É um mestre de sutilza singular!!
Senhorita B. disse…
Assino embaixo do post!
Abraços,
Renata
Lidi disse…
Também assino embaixo! Adoro e admiro muito Mayrant. Ele é o meu eterno mestre! Abraço.

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d