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Canalha!, de Carpinejar — Parte 01

Carpinejar
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Não suporto a ideia de homens que mal deixam o corpo da mulher e logo vão tomar banho, logo querem se afastar daquele ato e se desculpar pela impetuosidade (...) Que não se deitam mais para recomeçar, que não dormem agarrados com a nudez dela a completar os seus músculos, que não suspiram após gemer. Que não ficam a conversar a toa sobre os planetas que não foram descobertos, a rir dos vaga-lumes histéricos fora de casa (...) Eu não me sinto sujo depois do sexo. Eu me sinto limpo, eu me sinto perfumado, eu me sinto enredado de nascimento. E não darei tão cedo minha memória para a água"


"Na dor do amor, o desejo é chegar ao fundo de si, mas o fundo de si está na pessoa que deixou de nos amar. E nunca se chega ao fim. O fim não está mais com a gente. Foi junto com quem traiu a fidelidade em que acreditávamos" 


"O casamento deveria ser refeito mensalmente. Não fechar para balanço, não ser encerrado em um número inteiro. Que pudesse ser sempre insuficiente, inseguro, para que não perdêssemos a atenção um minuto sequer e cuidássemos para que ele sobreviva ao nosso lado. Sem folga, sem compensação, sem demora" 


"Estar chegando revela a ansiedade em definir os relacionamentos. Fala-se da proximidade para afugentar a distância. Não é uma mentira, é uma verdade afoita. Apressamos em dizer que amamos para não conviver com as dúvidas e tampouco gerar suspeitas da legitimidade do sentimento. Há uma pressa pelo final em todo início e há uma pressa pelo início em todo final. É obrigatório dizer 'eu te amo' para continuar e formalizar o laço (...) Amor é estar a caminho"


"A noção de que todo gay é promíscuo provém de uma teoria machista. Os gays não pensam sempre em sexo (os homens pensam muito mais). Ao pensar somente em sexo, empobrecemos o sexo. O gay tem a liberdade de dizer o que sente, o homem é obrigado a sentir o que dizem e esperam dele. Gay não precisa demonstrar que é gay. O homem é treinado a pensar em sexo ou a pensar que é homem. Não sobra tempo para amadurecer. Ele terá de decidir entre se exaurir e se renovar"


"Sonhamos melhor com a certeza da companhia"


"Ser chamado de 'canalha' por uma voz feminina é o domingo da língua portuguesa. O som reboa redondo. Os lábios da palavra são carnudos. Vontade de morder com os ouvidos. Aproximar-se da porta e apanhar a respiração do quarto pela fechadura (...) Não ser chamado de canalha pela maldade, mas por mérito da malícia, como virtude da insinuação, pelo atrevimento sugestivo"


"A mulher bebe do veneno para apressar a cura. É tomada de uma fúria santa, doida, inexplicável pelo canalha. A hostilidade atrai, inquieta, desestabiliza. Aspira à conversão. Assume um misticismo sexual. Confia que será diferente com ela. Ela salvará o canalha. Ele foi canalha porque não a conheceu antes. Canalha antes de Cristo. Já cogita casamento e filhos, uma casa com pátio ou um apartamento com varanda. Bate ainda um orgulho competitivo de mostrar às ex do canalha que conseguiu corrigi-lo. Só mulher entende esse duelo de memórias, essa vingança velada e implícita"


"O canalha não tem passado; tem histórico. É um bicho competitivo e não mede esforços em detalhar suas cenas. Sugiro a todos os homens em crise conjugal que assistam a uma rodada de causos. Voltará curado de qualquer culpa. Equivalente em terapia aos alcoólatras anônimos. Quem é escoltado por um amigo canalha encontra a redenção. Reconhece que suas maldades, as mesmas que subtraíram o sono por várias noites, são do jardim de infância. Por contraste recupera a paixão, descobrindo que não tem vocação para a carreira"



Trechos extraídos do livro de crônicas "Canalha!" (Bertrand Brasil, 2008), de Carpinejar.

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