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O oco-transbordo, de Tiganá Santana — Parte 02

Tiganá Santana
Foto: Rodrigo Sombra | Arte: Mirdad


"A espera detona os explosivos por não pertencer ao tempo. E, no que não pertence ao tempo, repassa-o às mãos da realidade"


"O rio talvez seja um caminho reverso arrumando a simplicidade das nascenças, a manutenção da prosa recuada, a permissão para lavar roupa que se limpa do trabalho. Um modo direto de aceitar a esquistossomose porque é o rio também uma fenda, uma ofensa que parece livre e descontrolada, acúmulo de água na pleura dos desertos"


"Três coisas hão de mudar: o rio, a causa e a cicatriz.
O primeiro, porque não regressa; o segundo, porque não segue e o terceiro, porque estanca.
(...) nada passa pelo corte.
ruptura da louça, da seiva e do que enverga"


"A roda não gira por ser ilusão; afeiçoa-se por ser amiga da morte"


"A ignorância de todos é o rio – não há o olhar em cheio – conforme a sua meritocracia e o seu arrependimento, conforme a fatalidade rica, descontínua, agnóstica"


"Sobram-lhe, ainda assim, fugidias,
certas tiras de independência tête-à-tête.
Nessas horas, o que é vivo
parece uma bola de buscas, parece a injustiça
face
ao cachorro raquítico ou a paciência da dissolução"


"Vai-se a lama e tudo o que dá chama de sangue
à avalanche"


"É preciso sair de onde se está, apunhalar, de frente, a vocação e tê-la informe, transfigurada, de melancolia, mas de fundo interino, de dutos, mas de opção por uma trilha em vez de outra"



Trechos extraídos do livro de poemas "O oco-transbordo" (Rubra Cartoneira Editorial, 2013), de Tiganá Santana.

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