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O drible, de Sérgio Rodrigues — Parte 02

Sérgio Rodrigues
Foto: Bel Pedrosa | Arte: Mirdad


"Aquilo a paralisou. Ela ia dizer alguma coisa, travou. Neto teve a impressão de que seus olhos negros ficavam ocos de repente, não vidrados mas vazios, como se o espírito tivesse escapado feito gás por um buraco abaixo da linha da visão. Ou da cintura. A consciência de ter acabado de desferir um golpe de violência ultrajante o desequilibrou (...) Era a mesma sensação que tivera na infância ao matar a porretadas, indignado por ter sido arranhado de leve no braço, o filhotinho de gato amarelo encontrado atrás de uma moita do Parque Guinle. A vertigem de ter ido longe demais, de ter agido de forma atroz e já não poder recuar. A náusea de saber que viveria para sempre com a lembrança da carinha assustada do bicho. A consciência de ser um monstro. 'Tudo bem, Gleyce, eu pago o aborto. Você vai na melhor clínica do Rio'"


"Sim, estava se aproveitando de uma vantagem socioeconômica para descolar sexo, mas existia alguém no mundo que, podendo, não fizesse isso? Que milionário ia abrir mão de traçar, digamos, uma bela universitária tijucana com base em princípios morais? Fazia tempo que a Realpolitik sexual tinha vencido o debate. Suave no pouso e na decolagem, Neto acabou se convencendo de que não só não fazia nada errado como fazia apenas o bem para as suas namoradas. Excluída a prostituição e a Mega-Sena, como poderiam aquelas meninas pisar no Quadrifoglio, degustar um Montes Alpha 2009, desfrutar de confortos mínimos que deveriam estar ao alcance de todos mas ainda eram exclusivos de uma minoria ridícula?"


"Na moldura da porta da cozinha ele começou a tremer de medo. A atriz de pornochanchada deve ter achado que fosse de tesão e não deixava de ser, eram as duas coisas e talvez uma terceira ainda sem nome. De repente a mulher estendeu os braços e seus olhos azuis o tragaram com a voracidade do mar na ressaca, rosto tombado para a esquerda como uma flor de caule partido, expressão dolorida de quem se enternece além o suportável diante de um gatinho abandonado.
Comeu Magda Vita em cima da mesa do café entre sacolas de Plus Vita e caixas de Kellogg’s, ela gemendo com hálito leitoso em seu ouvido:
'Ui, meu menino, ui, meu anjo, meu filhinho.'
Foi a primeira mulher que dividiu com o pai" 


"Foi o tempo das drogas e do sexo fácil, sem a culpa e o medo dos anos que vinham dobrando a esquina. Maconha era o mato de sempre e a cocaína estava no auge da fartura, mais barata que uísque no mercado carioca. A aids mal passava de um boato de mau gosto. O argumento politicamente correto de que consumir drogas é financiar o crime organizado dormia no limbo das ideias futuras. Somava-se a isso um sentimento coletivo de liberdade, subproduto eufórico e meio apatetado do fim da ditadura, ainda não contaminado pela desilusão que logo ia se revelar a fibra mais resistente do tecido democrático"


"Alma não se lava no chuveiro"


"Os gemidos eram escandalosos: berros, uivos. Pensou em dar meia-volta, não deu. Permaneceu paralisado na sala por um longo tempo, com medo até de respirar enquanto a gritaria atingia o clímax e finalmente começava a decair. Langorosas, esticadas como notas de guitarra, as vogais de uma trepada que soava épica foram se quebrar feito espuma na barra de um silêncio arfante"


"Entre o fim da infância e o auge da adolescência, meio orgulhoso e meio horrorizado, Neto aprendeu pela imprensa a soletrar o rol das amantes de seu pai, uma por uma: princesas europeias libertinas, starlets americanas drogaditas, socialites de pescoço longo de Modigliani, filhinhas perdidas de general e brigadeiro em idade ilegal dadas a vomitar às seis da manhã sob a mesa do Hippopotamus, escritoras intoxicadas de Anaïs Nin e Shere Hite, atrizes do Zé Celso imunes aos desconfortos da depilação, atrizes de pornochanchada e de Tchékhov, capas de Ele Ela e Status, aspirantes às capas de Ele Ela e Status, psicanalistas reichianas, cantoras bissexuais" 


"E Gleyce Kelly foi no embalo. Neto desabilitou o áudio dela e ficou olhando para o seu rosto bochechudo de Goldie Hawn esquecida no forno (...) Enquanto ela mexia a boca, Neto balançava a cabeça de vez em quando como se ouvisse mesmo a sua história, que no fim das contas não teria como passar de uma variação pouco criativa da triste história de abandono paterno e abnegação materna que um condicionamento bioquímico tão ancestral quanto besta levava a ser contada o tempo todo nas camas intercambiáveis do Shalimar, do Vip's e do Sinless"



Trechos extraídos do romance "O drible" (Companhia das Letras, 2013), de Sérgio Rodrigues.

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