Pular para o conteúdo principal

O drible, de Sérgio Rodrigues — Parte 01

Sérgio Rodrigues
Foto: Bel Pedrosa | Arte: Mirdad


"Muita coisa distancia vida afora pessoas que se contemplam sobre um abismo de vinte ou trinta anos – música, moda, política, costumes, tecnologia –, mas são praticamente indissolúveis os laços forjados na infância em torno das cores de uma camisa, do culto a ídolos vivos ou mortos, do frenesi terrível de se apertarem lado a lado entre milhares de seres humanos reduzidos a uivos primais, o menino de todas as épocas sentindo no estômago o pavor de ser engolido pela multidão e encontrando na presença do pai a segurança necessária para se perder em algo maior do que ele sabendo que, no fim da partida, fará o caminho de volta" 


"É de supor que esteja frustrado pelo gol que não conseguiu fazer, mas parece tranquilo, de uma placidez até arrogante de quem dá a entender que na verdade nunca quis fazer o que parecia ter querido fazer, que tudo saiu conforme o planejado e aquela impressão deixada em todo mundo – de que queria fazer o gol enquanto o tempo inteiro de sua intenção era perdê-lo por pouco, gravar no corpo coletivo da espécie a cicatriz desse “por pouco”, sabendo que ela queimaria mais que o gozo da realização –, aquilo era o drible definitivo, inconcebível, o drible em cima do drible em cima do pobre Mazurkiewicz"


"O futebol é cheio de planícies imensas, horas mortas como a que nós acabamos de ver. Um bololô de ruído, intenções que não se concretizam, acidentes, lances de sorte e azar. Nas horas mortas pode acontecer tudo (...) O futebol só pode ser revivido em melhores momentos, editado, enxugado, porque é a expectativa de ver qualquer momento se revelar um desses melhores momentos que leva a gente a transpor seus desertos imensos. Se nós já sabemos quais serão eles, e quando, a seca nos mata de sede (...) Sem a interrogação do futuro o futebol e a vida são de uma pobreza de bocha"


"Sem a nossa vocação doentia para a metáfora bombástica, o papo furado, o causo inverossímil, a gente não teria chegado tão longe. Mais de noventa por cento do público só tinha acesso ao futebol pelo rádio, e no rádio qualquer pelada chinfrim disputada em câmera lenta por perebas com barriga-d’água ficava cheia de som e fúria. A cada cinco minutos os narradores faziam um zé-mané qualquer aprontar um feito de deus do Olimpo. Claro que esse descompasso entre palavras e coisas era inviável a longo prazo, não tinha como se sustentar. E como obrigar a narração radiofônica a ficar sóbria estava fora de questão, restava reformar a realidade. Foi assim que o futebol brasileiro virou o que é: em grande parte por causa do esforço sobre-humano que os jogadores tiveram que fazer para ficar à altura das mentiras que os radialistas contavam"


"O futebol é um grande produtor de lixo pop"


"Não é o pior pedaço. É a vida. O jogo normal. Futebol é assim: o caos (...) Não é como o basquete, no vôlei, esses esportes em que a equipe mais talentosa e mais bem preparada faz valer sua superioridade noventa e nove por cento das vezes"


"A diferença entre vitória e derrota sempre teve muito de fortuito no futebol, isso explica as crendices no oculto (...) A medida de caos que nunca deixa de reinar em campo mesmo quando os times são talentosos e organizados. O Nelson Rodrigues satirizou isso com o personagem do Sobrenatural de Almeida. O Zagallo, até onde eu sei, é o último remanescente dessa, hã, escola filosófica. Só que era tudo besteira, ou se não besteira, vá lá, mitologia, linguagem. Como um radialista chamando de proeza um lance banal: linguagem pura. O sobrenatural era um véu que o pessoal aplicava sobre a realidade, não a própria realidade"


"Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais a humanidade dormia tranquila. Pelé desafiou Deus e perdeu, mas que desafio soberbo. Esse gol que ele não fez não é só o maior momento da história do Pelé, é também o maior momento a história do futebol. Você entende isso? A intervenção do sobrenatural, o relâmpago de eternidade que caiu à esquerda das cabines de rádio e TV do simpático Jalisco, 17 de junho de 1970?"


"A incrível história de Peralvo, o craque paranormal que sabia um segundo antes de todo mundo o que ia acontecer num campo de futebol e decifrava as almas que o cercavam a partir de um cardápio de cores mais variado que o catálogo de tintas da Suvinil"



Trechos extraídos do romance "O drible" (Companhia das Letras, 2013), de Sérgio Rodrigues.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Seleta: Nirvana

A “ Seleta: Nirvana ” destaca as 80 músicas que mais gosto da banda norte-americana (entre covers e autorais), presentes em 12 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Nevermind ”, “ MTV Unplugged in New York ” e “ In Utero ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 12 álbuns participantes desta Seleta 01) Lake of Fire [MTV Unplugged in New York, 1994] 02) Where Did You Sleep Last Night [MTV Unplugged in New York, 1994] 03) The Man Who Sold the World [MTV Unplugged in New York, 1994] 04) Heart-Shaped Box [In Utero, 1993] 05) Come as You Are [Nevermind, 1991] 06) Smells Like Teen Spirit [Nevermind, 1991] 07) Drain You [Nevermind, 1991] 08) Lithium [Nevermind, 1991] 09) In Bloom [Nevermind, 1991] 10) Plateau [MTV Unplugged in New York, 1994] 11) Oh Me [MTV Unplugged in New York, 1994] 12) Jesus Doesn't Want Me for a Sunbeam [MTV Unplugged in New York, 1994] 13) Something in the Way [Nevermind, 1991] 14) You Know You're Right [Nirvana, 2002] 15) Rape Me ...

Seleta: Marcy Playground

A “ Seleta: Marcy Playground ” destaca as 47 músicas que mais gosto da banda norte-americana (entre covers e autorais), presentes em cinco álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Marcy Playground ”, “ Lunch, Recess & Detention ” e “ Shapeshifter ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os cinco álbuns participantes desta Seleta 01) Opium [Marcy Playground, 1997] 02) Saint Joe on the School Bus [Marcy Playground, 1997] 03) Poppies [Marcy Playground, 1997] 04) One More Suicide [Marcy Playground, 1997] 05) Gone Crazy [Marcy Playground, 1997] 06) Sherry Fraser [Marcy Playground, 1997] 07) Sex & Candy [Marcy Playground, 1997] 08) Love Bug [Shapeshifter, 1999] 09) Rebel Sodville [Shapeshifter, 1999] 10) All the Lights Went Out [Shapeshifter, 1999] 11) Mr. Fisher [Lunch, Recess & Detention, 2012] 12) Irene [Leaving Wonderland... in a Fit of Rage, 2009] 13) Whiter Shade of Pale [Lunch, Recess & Detention, 2012] 14) Memphis [Leaving Wonderland... in a ...