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Mayombe, de Pepetela — Parte 04

Pepetela
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Quando um homem anda com uma pistola a gritar que vai matar outro, ninguém faz nada. É preciso que ele dispare para que se tomem medidas"


"Para os homens que apreciam a vida humana, que lutam porque apreciam a vida humana, camarada, é muito difícil ser-se voluntário para executar à punhalada um homem, mesmo que seja um traidor miserável. Eu vi as caras dos outros. Os maiores combatentes viravam-se para não ver, os mais duros combatentes tapavam os olhos com as mãos. E estas mãos, camarada, estas mãos espetaram o punhal na barriga do traidor e rasgaram-lhe o ventre, de baixo para cima. E o meu corpo todo sentiu as convulsões da morte no corpo do outro. Queres mais detalhes?"


"O soldado era um miúdo aterrorizado à sua frente, a uns quatro metros, as mãos fincadas na culatra que não safava a bala usada. Os dois sabiam o que se ia passar. Necessariamente, como qualquer tragédia. A bala de Sem Medo abriu um buraquinho na testa do rapaz e o olhar aterrorizado desapareceu. Necessariamente, sem que qualquer dos dois pensasse na possibilidade contrária"


"– Vocês falam tanto das massas populares e querem esconder tudo ao povo.
– Vocês, quem?
– Vocês, os quadros políticos do Movimento. Os que têm uma sólida formação marxista.
– Tu também a tens.
– Eu? – Sem Medo sorriu. – Eu sou um herético, eu sou contra a religiosidade da política"


"Há uns que precisam crer na generosidade abstrata da humanidade abstrata, para poderem prosseguir um caminho duro como é o caminho revolucionário. Considero que ou são fracos ou são espíritos jovens, que ainda não viram verdadeiramente a vida. Os fracos abandonam só porque o seu ideal cai por terra, ao verem um dirigente enganar um militante. Os outros temperam-se, tornando-se mais relativos, menos exigentes. Ou então mantêm a fé acesa. Estes morrem felizes embora talvez inúteis"


"Quando há problema tribal, não vale a pena pensar quem é que tem a culpa. Se duma vez foi um que provocou, é porque antes o outro tinha provocado. Quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo? É assim com o tribalismo"


"Defensor verbal do direito à revolta, adepto da contestação permanente, abusa da autoridade logo que a contestação se faz contra ele"


"Eu quereria que na guerra a disciplina fosse estabelecida em função do homem e não do objetivo político. Os meus guerrilheiros não são um grupo de homens manejados para destruir o inimigo, mas um conjunto de seres diferentes, individuais, cada um com as suas razões subjetivas de lutar ... Eu fico contente quando um jovem decide construir-se uma personalidade, mesmo que isso politicamente signifique um individualismo"


"A certeza de que estava perdido foi tão grande que decidi que o Inferno não existia, não podia existir, senão eu estaria condenado. Ou negava, matava o que me perseguia, ou endoidecia de medo. Matei Deus, matei o Inferno e matei o medo do Inferno. Aí aprendi que se devem enfrentar os inimigos, é a única maneira de se encontrar a paz interior"



Trechos presentes no romance "Mayombe" (Leya, 2013), de Pepetela.

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