Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"É diante do mar que gosto de tecer as minhas fantasias fúnebres (...) Eu sabia mais do que nunca que, um dia, verei todos os mortos da família (...) Mas onde, onde os verei? Talvez eu os encontre nas absurdas profundidades marinhas, onde as águas têm frio e sonham"
"No Sanatorinho, aprendi a olhar no fundo da nossa brutal e indefesa fragilidade. Ninguém é forte. Essa vontade de ser chorado geme em nós (...) Em 1934, o tuberculoso só era fiel, estritamente fiel, à própria doença (...) Eu me lembro como se morria no Sanatorinho. O sujeito mandava chamar a mãe, a mulher, o filho. E não vinha ninguém. O próprio Sanatorinho desaconselhava à família: – 'É melhor não vir. Não adianta.' E ninguém vinha. Minto. Certa vez, apareceu, lá, a mãe de um garoto. Mas chegou tarde: – o filho já estava enterrado (...) Ao voltar para a enfermaria, Simão dizia: – 'Vou chamar minha mãe.' (...) a velha espanhola chegava de vestido preto, magra, uma cara pétrea de dor. Simão não enxergava mais. Com os olhos de cego, pediu: – 'A mão, a mão.' Apanhou a mão, guardou-a no peito. E, de repente, a sua agonia ficou tão doce, e tão mansa. Quando ele morreu, foi a velha que entrelaçou as mãos do filho, e com que estremecido amor"
"A verdade é que a vocação suicida existe, pré-existe, em qualquer um. Quem não pensou em se matar? (...) as pessoas mais serenas, mais equilibradas, têm, de vez em quando, uma brusca e violenta nostalgia da morte. E nem se pense que temos medo da morte. É mentira. Ou por outra: – é um falso medo, um medo induzido por uma série de injunções morais, sociais, religiosas. A verdade é que o nosso cotidiano está cheio de pequenas imprudências, de pequenos vícios, de riscos propositais"
"Roberto levou o tiro ao entrar. Parei com o estampido. E veio, quase ao mesmo tempo, o grito. Não apenas o grito do ferido, mas o grito de quem morre. Não era a dor, era a morte. Ele sabia que ia morrer, eu também sabia (...) Roberto caíra de joelhos; crispava as duas mãos na mão que o ferira (...) Estava, ali, deitado, certo, certo, de que ia morrer. Pedia só para não ser tocado. Qualquer movimento era uma dor jamais concebida (...) Nunca mais me libertei do seu grito. Foi o espanto de ver e de ouvir, foi esse espanto que os outros não sentiram na carne e na alma. E só eu, um dia, hei de morrer abraçado ao grito do meu irmão Roberto"
"Era o último a beijar o meu irmão Roberto (...) Não era a primeira vez em que o via chorando. Quando perdeu uma filhinha de oito anos, Dorinha, também rebentara em soluços (...) 'Papai chora, também chora', eis o que eu pensava. Até então, eu não vira um adulto, homem feito, chorando. E me humilhou que os outros meninos vissem meu pai chorando (...) Agora o choro do meu pai não me humilhava. Eu queria que ele chorasse e cada vez mais alto, mais forte, e que todos vissem Mário Rodrigues chorando (...) Que bem me fez, que bem ainda me faz, a fragilidade ferida do meu pai. Eu o via, ali, tão órfão do próprio filho"
"Autópsia. Eu vivera uma experiência de reportagem policial. E sabia do martírio de um cadáver, no necrotério. Velhos, moços, meninas, mocinhas, garotos são espantosamente despidos. Ficam tão nus (...) não há nudez mais humilhada, mais ofendida, mais ressentida do que a da autópsia. Ah, meu Deus, os nus violados do necrotério. Também vira, nas fotografias dos jornais (...) Souza Filho na mesa do necrotério. Não era mais o político, o deputado, o importante. Era apenas e tão somente o cadáver numerado. E me subia, de negras entranhas, uma náusea cruel contra a burocracia hedionda que despe os mortos e exige a autópsia"
"Eis a verdade: – a fome varre, a fome raspa qualquer sentimento forte. O ódio exige boa alimentação, e repito: – para odiar o sujeito precisa de um sanduíche, pelo menos, um sanduíche"
"Nepomuceno dizia uma coisa que marcou toda a minha vida (...) – 'A Opinião Pública é louca! louca!' Isso dito aos arrancos, me assombrava (...) hoje posso dizer que tive várias e patéticas experiências pessoais com a Opinião Pública. O assassinato do meu irmão Roberto (...) não havia muito que discutir. Eis a questão: – podia alguém 'matar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos? Temos direito de matar o filho, ou a filha, ou a mulher do nosso inimigo?' (...) a Opinião Pública achava que se podia matar um dos filhos de Mário Rodrigues ... Lembro-me de um jornal que resumia, no título, um Juízo Final: – 'Justo Atentado.' (...) O júri fez o que a Opinião Pública exigia (...) absolvição, por uma maioria (...) Naquele momento, instalou-se em mim uma certeza, para sempre: – a Opinião Pública é uma doente mental"
"Um ano depois, comecei a ganhar. Eis o meu primeiro ordenado: – duzentos mil-réis. E, então, aconteceu esta coisa prodigiosa: – enquanto não recebi um tostão, era gratíssimo a Roberto. Tinha-lhe afeto: olhava-o como a um irmão. Mas, remunerado, passei a olhar com ressentimento, despeito, o jovem diretor. Foi aí que eu aprendi que os sentimentos fortes, como a ira, como o ódio, a inveja, exigem um salário"
"Irineu Marinho fundara A Noite (...) talvez um caso único em toda a história jornalística. Lia-se não por necessidade, mas por amor. Sim. A Noite foi amada por todo um povo. Penso nas noites, de minha infância, em Aldeia Campista. O jornaleiro vinha de porta em porta. Os chefes de família ficavam, de pijama, no portão, na janela, esperando. E lá, longe, o jornaleiro gritava: – 'A Noite, A Noite.' Ainda vejo um sujeito, encostado num lampião, lendo, à luz de gás, o jornal de Irineu Marinho. Estou certo de que saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma maneira e por amor"
Trechos presentes no livro de crônicas "Memórias – A menina sem estrela" (Agir, 2009), de Nelson Rodrigues.
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