Pular para o conteúdo principal

O reacionário — Memórias e confissões, de Nelson Rodrigues — Parte 02

Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"O brasileiro tem por hábito cochichar o elogio e berrar o insulto"


"Devo confessar o meu horror aos intelectuais, ou melhor dizendo, a quase todos os intelectuais (...) a maioria não justifica maiores ilusões (...) A inteligência pode ser acusada de tudo, menos de santa. Tenho observado, ao longo de minha vida, que o intelectual está sempre a um milímetro do cinismo (...) e, eu acrescentaria, do ridículo"


"Duas ou três vezes por semana, digo eu o seguinte: – 'Nada mais invisível do que o óbvio ululante.' E vejam vocês: – apesar da repetição deslavada, a frase tem, sempre, um ar de novidade total. O leitor ainda não desconfiou que eu já escrevi isso mil e uma vezes, sem lhe tirar e sem lhe acrescentar uma vírgula. E sempre vem alguém me bater nas costas: – 'Boa, aquela de óbvio! Ótima!' Fico eu a imaginar que ninguém lê nada ou não se lembra do que leu"


"Bem sei que certos sujeitos precisam odiar. Odeiam e não sabem quem e por quê. E quando, eventualmente, não odeiam, rosnam de impotência e frustração"


"Veio, lá de dentro, um som abominabilíssimo: – era o riso da mulher, riso agudo, cantante, de soprano. Até então, o nosso Disraeli não sabia se odiava a mulher, se a desprezava ou se, pelo contrário, a amava mais do que nunca. Mas o som o enfureceu. Puxa o revólver e faz saltar, à bala, a fechadura. Em seguida, invade o quarto. O amante se enfiou debaixo (...) da cama. Mas a infiel, mais ágil, mais elástica, acrobática, quase alada, teve tempo de se atirar do alto do terceiro andar. Por aí se vê que ela pecava por sexo e não por amor. O sexo corre e sobrevive. E, se fosse amor, ela se deixaria varar de balas como uma santa; e ainda morreria agradecida"


"As senhoras me diziam: – 'Eu queria que seus personagens fossem como todo mundo.' E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são como todo mundo: e daí a repulsa que provocavam. Todo mundo não gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções"


"Uma moça quebrou o braço. Saiu de hospital em hospital, procurando um médico; e, se não fosse médico, um estudante; e, se não estudante, um porteiro; em último caso, um servente. Mas vinha médico, ou estudante, olhava e concluía: – 'Não é de urgência.' Qualquer barbeiro diria: – 'É de urgência, sim.' E um açougueiro seria talvez mais enfático: – 'De urgência urgentíssima.' Mas não houve, repito, um médico que reconhecesse o óbvio como tal (...) Se fosse um hospital só, vá lá. Mas ela bateu em todos ou quase todos, um por um. Até que a moça morreu, apenas morreu e nada mais. E por que morreu? Porque, na maioria dos casos, é tão falsa, tão irresponsável, tão desumana a piedade oficial (...) Daí o meu horror à medicina socializada (...) A socialização cria uma responsabilidade difusa, volatizada, que não tem nome, nem cara, nem se individualiza nunca"


"Não insinuarei nenhuma novidade se disser que o nosso cotidiano é uma sucessão de poses. O ser humano faz pose ao acordar, ao escovar os dentes, ao tomar café. E nunca se sabe se o nosso ódio, ou nosso amor ou nosso altruísmo é ou não representado. Ninguém gesticula tanto quanto o homem e repito: – ninguém gosta tanto de fazer quadros plásticos"


"Com dez minutos de jogo, morria a admiração que, aliás, nunca tive pelo futebol inglês. Eis a pergunta que me fazia: – 'Quem é que joga assim?' Penso, penso, até que me baixou uma luz: – era o Bonsucesso. O time leopoldinense leva qualquer um à loucura. Como a Inglaterra, Bonsucesso defende-se com onze. E, simplesmente, a bola quer passar e não sabe como"


"Ninguém fala do Piauí, eu falei, e acuso o Brasil de abandoná-lo; e clamo por uma solidariedade nacional. Digo que a nossa imprensa faz, sobre o belo Estado, um silêncio crudelíssimo. Resultado: – os patriotas de Teresina estão ventando fogo por todas as narinas. O Secretário particular do Governador escreveu-me uma carta, que ainda não recebi, mas que já foi publicada. E, lá, para esmagar-me com seu sarcasmo, apresenta uma lista de todos os nomes ilustres do Estado. Penso que vai entupir-me com quinhentos piauienses notáveis. Diz dois nomes, exatamente dois. Não acredito. Quero crer que Piauí tenha dado muito mais que dois escassos talentos"


"Fiz-lhes a pergunta final: – 'Vocês são a favor da matança do embaixador alemão?' Há um silêncio. Por fim, falou o comunista: – 'Era inevitável.' E eu: – 'Se você acha inevitável o assassinato de um inocente, também é um assassino.' E era. Assassino sem a coragem física de puxar o gatilho"



Trechos presentes no livro de crônicas "O reacionário – Memórias e confissões" (Agir, 2008), de Nelson Rodrigues.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...