Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"O homem só começa a ser homem depois dos instintos e contra os instintos"
"O co-piloto do avião conseguira sobreviver ao choque. Muito ferido, porém, pediu que o matassem com o seu próprio revólver. Diz a notícia, de maneira sucinta, impessoal, inapelável: – O que foi feito. Se as palavras têm um valor preciso, temos aí um assassinato. E não foi só. Os outros sobreviventes não só mataram como ainda o comeram. E mais: – resgatados, os antropófagos voltaram de avião para sua terra. No meio da viagem, um patrulheiro descobre em pleno voo que os sobreviventes ainda levavam carne humana. No seu espanto, perguntou: – 'Por que vocês trazem isso?' Explicaram: – na hipótese de que faltasse comida no avião, eles teriam com que se alimentar"
"Todos comeram carne humana? (...) houve um, entre tantos, entre todos, que disse: – 'Eu não faço isso! Prefiro morrer, mas não faço isso!' E não fez. Os outros tentaram convencê-lo. E quando ele, em estado de extrema fraqueza, arquejava na dispneia pré-agônica, quiseram forçá-lo. Mas só de ver a carne, cortada como no açougue, ele tinha náuseas medonhas. Seu último suspiro foi também um último não (...) Mas reparem num detalhe desesperador: – aquele, que preferiu morrer a devorar o seu semelhante, não merece nenhum interesse jornalístico. A reportagem dedica-lhe, no máximo, três linhas frívolas e estritamente informativas. Por sua vez, o público ignora o belo gesto que preservou, até o fim, a condição humana. Era homem e morreu homem"
"O Brasil é muito impopular no Brasil"
"O que chamamos de 'Nordeste' é um saco ou pacote, onde enfiamos várias misérias. Chega a ser uma impiedade. Dentro do saco ou do pacote, ninguém é ninguém, os Estados perdem a identidade, nada tem nome. E ocorre esta coisa a um só tempo hedionda e patusca: – enquanto resolvemos os problemas do Nordeste, não cuidamos dos flagelados de cada qual"
"Os homens públicos só costumam fazer o que rende promocionalmente (...) a seca, por exemplo, é plástica, literária, retórica, jornalística. E há sempre alguém disposto a fazer nome com a seca"
"Os romancistas não fazem romance, os poetas não inventam uma metáfora, os dramaturgos não criam um personagem. Temos uma literatura que não escreve. Se aparecer um Dante, um Shakespeare, um Proust, sei lá, ninguém vai saber, porque não temos uma consciência crítica (...) Perguntam: – e por quê? Porque os intelectuais exigem dos intelectuais atestado de ideologia (...) se for um solitário, um independente, um original – não terá uma linha em jornal nenhum"
"Há uma debilidade mental difusa, volatilizada, atmosférica. Nós a respiramos. Isso aqui e em todos os idiomas. É um fenômeno internacional tão nítido, tão profundo, que não cabe nenhuma dúvida, não cabe nenhum sofisma. E acontece, então, esta coisa nunca vista: todos agem e reagem como imbecis. Não que o sejam, absolutamente. Muitos são inteligentes, sábios, clarividentes e têm um nobilíssimo caráter, e uma fina sensibilidade, e uma alma de superior qualidade. Mas num mundo de débeis mentais, temos de imitá-los (...) para sobreviver, para coexistir com os demais, o sujeito precisa ir ao fundo do quintal e lá enterrar todo o seu íntimo tesouro"
"Sempre digo que o pior da bofetada é o som. Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa, nem humilhação, nada. Agressor e vítima poderiam, em seguida, ir tomar cerveja no boteco mais próximo, em festiva confraternização"
"Então, há o desastre de avião. Quando apanharam o rapaz, ele estava tecnicamente morto. Levam o agonizante para o hospital. Onassis corre para os médicos: – 'Peçam toda a minha fortuna. Pagarei pela vida do meu filho o que quiserem.' Era o dinheiro, sempre o dinheiro, que dá a esse homem taciturno uma sensação de onipotência. Pouco antes, o filho dissera, com sereno fatalismo: – 'Meu pai vai me sobreviver.' Sabia que a morte amadurecia, silenciosamente, na sua carne e na sua alma. Quando Onassis sentiu que tudo era inútil, disse apenas: – 'Deixem meu filho morrer.'
Trechos presentes no livro de crônicas "O reacionário – Memórias e confissões" (Agir, 2008), de Nelson Rodrigues.
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