Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Nada mais límpido, nítido, inequívoco, do que o nosso racismo. E como é humilhante a relação entre brancos e negros. Os brancos não gostam dos negros; e o pior é que os negros não reagem (...) Em vez de odiar o branco, o preto brasileiro é um ressentido contra o próprio preto (...) A 'democracia racial' que nós fingimos é a mais cínica, a mais cruel das mistificações"
"A beleza tem de ser uma exceção. A partir do momento em que todos são bonitos, ninguém é bonito"
"O que está me doendo, na carne e na alma, é que não dissemos tudo um ao outro. Aquele que está morrendo tem palavras extremas para dizer e palavras extremas para ouvir. Mas algo me travou a mim e a ele; tive talvez vergonha de ser meigo e calei a palavra do amor tão ferido"
"Íamos ver Terra em transe, de Glauber Rocha (...) perguntei a um conhecido: – 'Bom filme?' E o sujeito, que é um legionário da esquerda idiota, respondeu: – 'Fascista.' Insisti: – 'Rapaz, não perguntei se era fascista. Perguntei se era bom.' (...) E assim desponta nas esquerdas brasileiras um tipo único, inédito, empolgante, de cretino. É o débil mental por simples pose ideológica (...) achando que só assim serve ao socialismo. Diga-se de passagem que tivemos, eu e o desafeto de Terra em transe, uma discussão truculenta. Disse-lhe que, para meu gosto, tanto fazia o filme comunista, fascista, espírita, budista, macumbeiro ou jacobino. Eu queria, apenas, com minha feroz simplicidade, que fosse um bom filme e nada mais"
"Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em transe. Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da plateia esta verdade, mansa, translúcida, eterna: – o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim, eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar (...) Terra em transe não morrera para mim. Da madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor (...) Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda"
"O que aprendi, lendo o gigantesco drama, é que o artista precisa de solidão para não apodrecer"
"Ali estava um admirador anônimo e jucundo. Quando um deles se atravessa em meu caminho, me sinto enriquecido, denso; e é como se uma luz súbita pousasse na minha vida. Essas admirações de rua, de esquina, de boteco dão ao artista uma sensação de plenitude. Já os admiradores literários causam um desgaste homicida"
"Ainda agora, vejo a figura ameaçada de Guimarães Rosa. Não sei se ele fará algo que se pareça ao Grande sertão. Das nossas figuras literárias, é, que eu saiba, a mais acuada pela horda bestial dos admiradores. Quando ouço alguém dizer do Rosa que é o 'nosso maior prosador', tenho vontade de pedir, pelo amor de Deus: – 'Não o matem antes do tempo.'"
"O escritor que faz mais do que a própria literatura ou não é escritor ou é um pulha"
"Desde aquela época, cada um, na vida literária, tinha que ser um engajado. Ninguém ia à rua sem a sua pose ideológica (...) 'E você? Qual é a sua contribuição?' Baixei a vista, rubro de vergonha. E, como ainda não contribuíra, senti-me um fracassado nato e hereditário. Daí por que não posso ver, hoje, o Guimarães Rosa, sem uma sensação de deslumbramento (...) eis que vem o autor de Sagarana e ergue a sua torre de marfim, assim como um cigano põe a sua barraca. Nada existe: – só a sua obra. Estão brigando no Vietnã? Pois o nosso Rosa escreve. Há a guerra nuclear, o fim do mundo? Guimarães Rosa funda outro idioma. A torre de marfim fez dele o maior artista brasileiro do século"
"O bom no socialismo não é a justiça, não é a paz, nem os bons sentimentos – é a burrice"
Trechos presentes no livro de crônicas "Memórias – A menina sem estrela" (Agir, 2009), de Nelson Rodrigues.
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