Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Aprendi, entre outras, esta verdade tão evidente e jamais suspeitada: – pode-se amar sem posse, e amar até a última lágrima de paixão e de vida. Lembro-me de uma jovem senhora que me dizia: – 'Meu amor acabou na primeira noite do casamento'. Engano. O amor que acaba não era amor. Todo amor é eterno. Eu diria que a nossa tragédia começa quando separamos o sexo do amor. Vejam as doenças da carne e da alma, do câncer no seio às angústias sem consolo. Os nossos males têm quase sempre esta origem fatal: – o sexo sem amor"
"1922 (...) sala do quarto ano primário da escola pública. Com oito anos incompletos, eu contava um adultério, com todos os matadouros (...) Um dia, o marido volta mais cedo. Ao entrar em casa vê aquele homem saltar da janela (...) A mulher caiu-lhe aos pés, soluçando: – 'Não me mate! Não me mate!' O marido agarrou-a pelos cabelos. E o que houve, em seguida, foi uma carnificina (...) A professora acabou de ler e olhara para mim, aterrada. Depois, levantou-se e foi mostrar o texto à diretora. Daí a pouco apareciam, na porta, a professora e mais duas ou três (...) 'É aquele? Da cabeça grande?' (...) Fui chamado. Levantei, vermelhíssimo. Todo mundo estava interessado no erotismo e na crueldade da história e dos personagens. No elogio, não. Quase me farejaram como se eu fosse um pequeno tarado"
"Trair um amor é uma impossibilidade. Mesmo com outra mulher, é o ser amado que estamos possuindo"
"Eu também andei de chapéu, ou de pires na mão, pedindo pelo amor de Deus que me elogiassem. Se me perguntarem se eu fiz os papéis mais humilhantes, eu direi que fiz, sim, os papéis mais humilhantes. Tudo o que eu escrevia saía mostrando, de porta em porta. Eu me lembro de minha primeira peça, A mulher sem pecado (...) Com o texto debaixo do braço, eu pensei menos nos direitos autorais. Pouco importava que o meu texto fosse ou não remunerado. Eu queria o elogio, não simplesmente falado, cochichado. Queria o elogio impresso (...) Eu também queria ver a minha cara no jornal"
"Um Shakespeare é apenas co-autor de si mesmo; o outro co-autor é cada sujeito da plateia. Seria válido o público, se tivesse uma função estritamente pagante; ou, mesmo sem pagar, se fosse passivo e grave como uma cadeira. Mas o público pensa, sente, influi, aplaude e vaia. O autor não tem nada a ver com o sucesso. Quem o faz é o público. Mas dizia eu que o espectador jamais consegue ser inteligente. Está inserido na multidão: é um contra os demais. Essa inferioridade numérica esmaga um gênio. Como se pode ser lúcido se, ao lado, está a tal senhora gorda comendo pipocas?"
"O amor, como o imaginamos e como o fazemos, é tão falso, tão vil e, pior, tão sem amor (...) o amor começa depois dos instintos e contra os instintos"
"Eu me considerava romancista e só o romance me fascinava. Não queria ler, nem ver teatro. Depois de A mulher sem pecado é que passei a usar a pose de quem conhece todos os autores dramáticos passados, presentes e futuros. Na verdade, sempre achei de um tédio sufocante qualquer texto teatral. Só depois de Vestido de noiva é que tratei de me iniciar em alguns dramaturgos obrigatórios, inclusive Shakespeare"
"Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor. Nada interfere no pudor, na exclusividade e na inocência de sua relação com a obra de arte. Está só, espantosamente só, com o soneto, o romance ou com o drama. Já o espectador é o mais comprometido, o mais impuro e, por outra, o menos inteligente dos seres"
"Mário Rodrigues foi o maior jornalista brasileiro de todos os tempos. Desde os sete anos, eu lia os seus artigos e me crispava de beleza. Ainda hoje, eu os releio: e eles preservam, através das gerações, o verbo fremente da justiça e de procela. E, no entanto, ninguém fala Mário Rodrigues. Nas histórias jornalísticas, o seu nome não aparece. Há um silêncio e repito: – um vil silêncio. Eu diria que o silêncio iníquo é também a glória"
"Na Europa, ama-se com paisagem. Por trás do homem e da mulher, tudo tem mil anos: – as pontes fluviais, as igrejas, os telhados, as flores e os pombos"
"A novela dá de comer à nossa fome de mentira"
Trechos presentes no livro de crônicas "Memórias – A menina sem estrela" (Agir, 2009), de Nelson Rodrigues.
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