Catarina Guedes
Foto: Ricardo Prado
"(...) Normal é um conceito bem relativo. O meu normal certamente enche os olhos da indústria farmacêutica, mas ela não fatura comigo, porque não arrisco mais que um frasco de fitoterápico floral conservado no conhaque, direto na boca, sem conta-gotas (...) O dia amanheceu com um cheiro de cuscuz, e ovo frito. Acertei as contas com a senhora na portaria e fingi que não vi os casais esquisitos que saíam lá de dentro. A mulher, que também não parecia nada normal – ou, ao contrário, era tão normal e ambientada que parecia ter sido feita da mesma argamassa daquelas paredes – perguntou se eu por acaso não tomaria o café da manhã (...)"
"– Paula Oliveira, por favor. – A Paula não veio hoje, nem virá nos próximos 30 dias. Saiu de férias – falou uma dessas criaturas de redação que, embora não seja a norma culta, nem tampouco o hábito local, não dispensa um artigo definido antes do nome próprio."
"Theo é do tipo que ama as coisas e utiliza as pessoas, como diz um velho provérbio. A raquete era tão especial quanto uma caçarola francesa, um taco de golfe ou um barbeador elétrico, simplesmente pelo fato de que ele pagou por todas essas coisas. Por associação, todo esforço em conquista diária, todo avanço rumo à admiração do próximo, ou qualquer ganho em intimidade ficam em segundo plano, pois não envolveram diretamente cifras para a obtenção. Logo, não são fáceis de mensurar. Estranho fazer esta observação sobre alguém que, como já disse, era capaz de chorar diante de uma obra de arte (...)"
"O lobby do hotel estava animado. Uma interessante aglomeração masculina. Nada que valesse a pena, mas a testosterona, ainda que pouco destilada, recarrega as minhas forças e me enche de confiança. Estranhamente, ali naquele hotel, ao contrário do que me acontecia em bares, jantares e convenções importantes, na badalada vida mundana em que eu desfilava prodigamente minha coleção de trejeitos intrigantes e frases inteligentes, fiquei tímida e passei dura sem encarar ninguém ou expressar qualquer sentimento (...) Já ia pagando a conta e quase respirei aliviada, quando veio a pergunta.
– Está aqui com seu marido, moça?
– Não. Sozinha.
– A trabalho?
– Não...
– Família no interior?
– Não – retruquei quase impaciente e, confesso, um pouco desconcertada (...)
– Se a senhora está de coração partido, tem uma pessoa aqui que não erra uma.
E, tirando um panfletinho da registradora, me entregou.
IRACEMA – ALMA MÍSTICA (...)"
"(...) resolvi que ia fugir dos hotéis e pousadas mais graduados do meu guia de viagem e me instalei num hostel no centro da cidade. Já que para todo mundo do meu círculo urbano de amigos eu era uma fracassada sentimental em fuga, melhor era manter as más aparências e me atolar logo de uma vez por todas na imagem de fugitiva expiadora, para evitar qualquer impressão de auto-piedade compensatória que um hotel ou pousada de mais de duas estrelas pudesse causar (...) Óbvio que eu procurei um quarto com banheiro porque, depois dos 30, baixar o nível de exigência a rés do chão envolve muito risco e sacrifícios aos vários rituais de higiene e beleza que a gente adquire ao longo do tempo (...)"
Presentes no romance "Isadora, sua camisola La Perla e a Br" (Kalango, 2015), de Catarina Guedes, páginas 11 e 14, 08, 49. 40-41 e 74, respectivamente.
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