Dalton Trevisan (foto daqui)
"Na primeira noite ele conheceu que Santina não era moça. Bento havia se casado por amor e ficou desesperado; matar a esposa e suicidar-se era deixar o outro sem castigo. Depois de muita insistência, ela revelou que, há dois anos, quando se achava deitada à noite, pajeando uma criança, entrara no quarto um primo chamado Euzébio e lhe fizera mal, sem que pudesse defender-se. (...) Santina pediu perdão, mas ele respondeu que era tarde – ela casara de grinalda sem ter direito. (...) Por mais que ela se enfeitasse, com banho no rio e fita no cabelo, Bento mastigava a sua raiva no prato de feijão. (...) Ficou muito nervoso, comia pouco e quase não dormia, de olhos acesos na escuridão. A moça estirava-se a seu lado, sem que um pudesse consolar o outro. Nunca mais ele fez qualquer carinho. (...) Não podia esquecer o agravo, ofendido com o primo, e sentia gana de se vingar. (...) Ah, se lhe houvesse contado antes... quem sabe pudesse perdoar e, pelo caminho, berrava palavrões e feria as árvores com o machado."
"(...) Dormia embriagado todas as noites, não no quarto do casal, mas no paiol da lenha. Trazia um embrulho de pastéis, que mastigava entre goles de aguardente; estavam frios e úmidos de gordura, o que era indiferente, pois não descobria sabor. (...) E olhava: as velhas telhas encardidas e cobertas de teias. Quando chovia, despregavam-se as aranhas de ventres peludos. A cabeça debaixo do lençol, mordendo os dedos, tremia sufocado de pavor. (...) o ronco estertoroso da velha encobre a respiração dos filhos. (...) Bem que ela o preveniu: – Você está perdendo a melhor idade dos seus filhos. (...) Embora aberta a porta do aposento, ele se afasta sem voltar o rosto: é uma jaula o amor dos filhos, dourada quem sabe, mas não furam os olhos do passarinho para que cante mais doce?"
"Encomendando o corpo na igreja, e ainda com chuva, D. Irailde insiste em acompanhar a filha ao cemitério. Na sepultura do padrinho, foi aberta uma cova, cheia de água suja. Com aquela água, a mãe não permite que enterrem Dorinha – o vestido ficaria estragado. (...) Impossível esgotar o buraco, sempre um pouco d'água no fundo. (...) Com permissão do prefeito, manda erguer às pressas um túmulo no terreno mais alto do cemitério. E dois dias depois, numa tarde de sol, assiste à exumação. Desenterrado o ataúde, exige que seja aberto, para ver se a filha não está molhada. Os coveiros recuam, enquanto ela penteia a longa cabeleira grisalha da moça. Só então regressou em paz para casa."
"Embevecido, passando e repassando os olhos ávidos nas minhas vestes em desalinho e nos cabelos em graciosos caracóis que se espalhavam sobre a testa pálida, sua excelência buscava sub-repticiamente devassar as minhas belezas escondidas. Enquanto eu ouvia enlevada o seu fogoso discurso, o velho sátiro arrastava-se, ainda de joelhos, pelo tapete escarlate. Agarrou de súbito o meu pezinho descalço e cobriu o centro de seus desejos com beijos úmidos e quentes. Um resto de pudor sustinha-me à beira do precipício. (...)"
"– Homens... – resmungou Ivone, quando eu voltei. – Fazer com ela o que o Zeca fez.
– Que foi que ele fez, meu bem?
– Ainda você pergunta? Jogou-a fora, naquele estado.
– Eu não faria isso com o meu amor.
– Você também não presta. Pensa que eu não sei do seu caso com Doralice?
Começou a chorar – as lágrimas doces do álcool. Descansei a cabeça dela no meu ombro. Estávamos sós na sala, os dois e a velha, sem contar Doralice. A noite não tinha fim, éramos os vivos."
"O noivado seguinte foi com uma prima de terceiro grau, bem ao jeito de D. Cecília, que fez gosto no casamento. Chamava-se Laura, era magra, bonitinha e anêmica. José não se decidia a marcar a data e ela acabou morrendo, doente do peito, cinco anos depois. Uma tarde surgiu na casa a mãe de Laura, que vinha reclamar as cartas da filha. José ficou em dúvida se as teria ou não devolvido. Acompanhado das duas senhoras, foi vasculhar o quarto, enquanto D. Cecília se desculpava das migalhas pela cama. Após muita busca, encontraram as cartas amorosas de Laura perdidas no fundo de um baú – o noivo as jogara lá e se esquecera delas."
"– Olhe que amanhã é dia de regime!
Lambiscam e discutem os sonhos. Em nenhum deles aparecem borboleta ou esquilo. Os bichos dos sonhos são proporcionais: rinocerontes, focas, hipopótamos. As noites de Rosa povoam-se de cavalos empinados relinchantes. Augusta sonha com um elefante branco:
– O elefante chegou, ergueu as patas e ficou sorrindo pra mim.
– Não se olhe tanto ao espelho – resmunga o marido."
Presentes no livro de contos "Cemitério de elefantes" (Civilização Brasileira, 1970), de Dalton Trevisan, páginas 03-04, 18-19, 74-75, 46, 105, 08-09 e 23, respectivamente.
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