Pular para o conteúdo principal

Sete passagens de Hélio Pólvora no livro A mulher na janela

Hélio Pólvora (foto: Erno Schneider)

"Quando o dinheiro acabou e já não havia cigarros, ele embrulhou o melhor terno (possuía dois) e desceu a escada. Pisava nos cantos dos degraus para não despertar a madeira e atrair o dono da pensão. Ultimamente evitavam-se – um com vergonha de cobrar o dinheiro, o outro de entrar em longas explicações. Por isso ele renunciara ao jantar; a tortura repetia-se apenas ao meio-dia. De cima, do seu quarto, espreitava a descida dos hóspedes, e quando o volume de vozes alteava-se, descia, procurava mesa encostada à parede e desdobrava o guardanapo nos joelhos. O dono da pensão aproximava-se com a terrina de sopa. Não se falavam, mas era como se travassem, um de cabeça baixa, o outro encarando-o do alto, áspero diálogo (...) De modo que ele desceu a escada a pisar de leve, o embrulho de roupa batendo-lhe na ilharga. Avançou pela sala agora vazia, em largas passadas – mas como se o pressentisse, ou estivesse à sua espera, o dono da pensão abriu uma porta e escorou-se no portal, silencioso – uma aparição. Olharam-se e ele moderou os passos, balançou o embrulho com ar de descaso, assim como quem leva roupa suja à lavanderia. Ele sabe; sabe que estou liquidado."

"Então a música irrompeu. Ninguém, na estação dos bondes, onde havia tabuleiros de laranjas descascadas, e onde um rapaz de avental sujo fritava pastéis, viu o cego chegar. Veio de manso, apalpando o terreno, a estender os braços. Alguém lhe deu um tamborete: arriou-se, circunvagou os olhos mortos de estátua e abraçou dolorosamente a sanfona. Tocou uma velha canção. Os italianos, a caminho da hospedaria, pararam. Bonita, o diabo da música. Falava de jangadeiros. Havia um que partira, não voltou. A amada, na praia, chorava a perda. O cego curvava-se sobre o fole, queria introduzi-lo no peito. Balançava a cabeça ao compasso da música. Os olhos mortos, protuberantes, pareciam querer destacar-se do rosto, como frutos, e cair ao chão, maduros."

"(...) o homem da espingarda refazia as armadilhas; senhor do dia e da noite, violava solidões, imprimia no barro liso das encostas, na lama fina das margens dos ribeirões, a marca do seu pé de dedos espalhados. (...) – Tem cara de assassino – diziam as mulheres."

"Pela manhã, dia de São João, coberta a manhã de névoa ainda mal esgarçada, lançava-se à procura de bombas que haviam retido o tiro. (...) investigava os matagais próximos, revolvia o monturo. Espalhava as cinzas ao pé da fogueira morta e recolhia bombas molhadas de orvalho, esquentava-as na palma da mão, transmitia-lhes as vibrações do seu coração inquieto. (...) Não, elas ainda pulsavam. Haviam consumido a mecha, ardido à flor da pele, mas o secreto mecanismo sustara o disparo. Sopesava-as: estavam gordas de fogo concentrado. Necessário aviventá-las, que a manhã estava fria, mal desperta, e o orvalho umedecera o papelão. Juntava brasas no terreiro, agachava-se e aproximava a bomba do calor do braseiro. Soprava. Inchava as bochechas, esvaziava o ar aprisionado, via o papelão chamuscar-se. A fumaça subia e cegava-o. Escorriam lágrimas, a tosse lhe prendia a garganta. Novo sopro, difícil, estertoroso. Era preciso salvar a bomba da destruição matinal para o estampido da noite de São João."

"– Foi o diabo-a-quatro. (...) Os miúdos recolhiam a expressão e a submetiam a torturante análise. Diabo-a-quatro. Devia ser um diabo multiplicado por quatro, quatro diabos juntos, tentações enormes. Terrível. (...) O abraço da rede fechou-se, gélido, sobre o corpo de tio Julião. Estava muito frio lá fora, e o frio também procurou aconchego, lugar mais quente; bateu às portas e às janelas, esquivou-se, insinuou-se, descobriu frechas, telhas rachadas, buracos nas tábuas – e foi entrando. Tio Julião afundava-se mais na rede, desesperado. Sentia o frio penetrar, em agulhadas, até os ossos. As juntas emperravam-se, estalavam. Procurava em vão saliva para umedecer os beiços endurecidos. Frio como o diabo-a-quatro."

"(...) Não havia adversários para João da Verdura. Ele corria com o vento no rosto e nos cabelos, o ar da madrugada, a frescura do sol que se deitava – isso era o seu alimento, gás para o motor possante do seu peito. (...) Porque é um primitivo. Nasceu para correr, não nas raias oficiais, com tiro de pistola, camiseta e sapatos de tênis, mas nos caminhos, através do mato rasteiro, de pés nus, tabuleiro na cabeça – e o vento, o sol se pondo, a suavidade do mundo que se deita ou se ergue. (...)"

"Isso se ele despertava aos domingos de amores com a terra que a lâmina da enxada revolvia durante a semana. Pois me lembro de tê-lo visto muitas vezes em seu despertar ronceiro, ensimesmado – e não querer conversa. O seu lírico renascer para o mundo domingueiro, em funeral. Demorava-se à mesa, lerdo, a talhada de cuscuz custando a desfazer-se no prato raso. Olhando-lhe o rosto, eu o via como um pedaço de chão, acidentado, que pulsava, latejava, na força de uma insopitável quão desconhecida criação."




Presentes no livro A mulher na janela (Estante, 1961), páginas 23-24, 52, 16, 75-76, 32-33, 45-46 e 145, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...