Ruy Espinheira Filho - Foto: Marina Silva
O passado
Ruy Espinheira Filho
É verdade,
escrevo muito sobre o passado,
porque nele é que está tudo em seu lugar
e ninguém se foi.
O passado.
Que é, na verdade,
o que possuímos,
pois o presente acabou de passar
e o futuro é um sonho que jamais alcançaremos
simplesmente pelo que é:
futuro.
É, enfim, o que temos,
o que somos:
o passado.
Que, como se sabe, sendo passado,
não passa.
E às vezes é doloroso,
como aquela janela alta de onde nunca desceram
sobre mim
os longos cabelos da amada.
Que não me amou, mas,
por isso mesmo, se fez musa
por toda a vida.
O passado.
Que é também o que um dia
morreremos,
quando morrermos
de verdade.
No meu caso,
subindo pelos longos cabelos lançados
da mais alta janela
sobre mim.
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Importância
Ruy Espinheira Filho
Há os que chegam
ao momento em que dizem,
com verdade,
que já mais nada importa.
Com verdade, sim, acredito.
Mas eu, se disser a mesma coisa,
certamente não será
com verdade.
Porque me importar é
da minha natureza.
Não deixei nunca de me importar,
mesmo quando até me parecia que não.
E me importarei sempre,
até o fim da vida
(e ainda depois, se houver mesmo
esse adicional que tantos reivindicam).
Então, não me digam
para não me importar.
Porque me importei, me importo
e me importarei.
Como foi, é
e será.
Sim, repito, se um dia eu disser
que já mais nada me importa,
podem todos crer que não será
com verdade.
Mas, se não querem crer
nesta verdade, aí, sim,
poderei dizer
também com verdade, que
não importa.
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Os dois
Ruy Espinheira Filho
1. Ivan Junqueira
Chegavam os 80 anos.
Viriam festas,
reedições de livros,
poesia inédita.
Faltavam apenas alguns dias.
Que, infelizmente, faltaram.
Há pouco falávamos ao telefone.
Agora, aparelhos mudos.
Mas converso com seus livros,
sobretudo com os novos poemas.
Assim é e será,
enquanto meu próprio tempo
não faltar.
2. Mário Vieira da Silva
Um, emocionado, no velório,
aproximou-se
e reclamou por ele ter feito aquilo.
Por haver morrido.
O morto,
que não era de deixar nada sem resposta,
nada respondeu.
As palavras do homem ressoaram em mim
profundamente,
porque diziam exatamente
o que eu queria dizer.
Sim, não era para ele ter morrido,
tudo ficava pobre e triste
demais.
Não sei para onde suas cinzas foram levadas,
se descansaram na terra ou na água.
Mas as imagino em seu último voo,
fúlgidas de amizade
e esperanças.
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Soneto do longe
Ruy Espinheira Filho
Sorri, o amigo morto, na memória
e na fotografia. Ah, longe a vida,
aquela, que deixou esta perdida,
fechando o livro de uma bela história.
Desce a sombra da noite. Fico olhando
para a grande distância onde já fui
feito da luz que agora se dilui
numa sombra que aos poucos vai baixando
mais que na noite. Vasta, espessa sombra
que, íntima, me envolve, fria, e assombra
tudo o que sou. E continuo a olhar
o longe em mim, como por vida afora
hei de ficar, até chegar a hora
de o que resta do Tempo se apagar.
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Quando
Ruy Espinheira Filho
E então veio
Quando.
Quando.
E te amei demais.
Demais, demais. Te amei.
E tanto, tanto
que não faz sentido falar de
Onde.
Não, não me perguntem por ele,
Onde,
que lá ficou.
Mas, sim, de
Quando
podem me perguntar.
Porque,
por amar demais,
tanto, tanto, tanto,
Quando
ainda agora é,
como foi e para sempre,
Quando.
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"1
A cadeira no avião.
2
Ele comprou a passagem
e só não é visível na cadeira
porque dias antes embarcou em viagem
bem mais longa, ampla, profunda
e,
para todos,
principalmente para ele,
indesejada.
3
A cadeira, porém, não está vazia
para nós,
Maria da Paixão e eu,
que com ele combinamos esta viagem,
pois bem o vemos ali,
no assento do corredor,
ao nosso lado,
o que nos garante um voo perfeito,
sob sua proteção."
"1
Chore, menina,
chore,
sobre o leite derramado,
chore.
Que pode você fazer além de
sobre o leite derramado
chorar?
2
Chore, à vontade
chore,
como todos nós estamos
chorando. Longamente
chorando, desde
a origem dos tempos.
3
Porque assim é a vida:
leite derramado
e lágrimas."
"3
Bem, o leitor é o que possui
a intuição, o que sente
a emoção.
Ou seja: o leitor comum.
Sim, todo leitor digno do nome
de leitor é
leitor comum.
Que não é o que se engana,
o tolo,
o pobre de espírito
(que este também são incomuns,
à sua maneira...),
mas,
como dizia o Dr. Johnson,
aquele que, com o bom senso não corrompido
pelos preconceitos literários
decorrentes dos refinamentos da sutileza
e do dogmatismo da erudição,
vai finalmente decidir sobre toda a pretensão a
honrarias poéticas.
Ou seja: é do leitor comum a definitiva
sentença."
Presentes no livro Babilônia & outros poemas (Patuá, 2017), páginas 117, 120, 58, 69 e 89, respectivamente, além dos trechos dos poemas Mário Vieira da Silva (p. 79), O grande choro (p. 61) e Samuel e Virgínia (p. 131), presentes na mesma obra.
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