Diga trinta-e-três
Angélica Amâncio
Ontem
33 caralhos
invadiram o corpo
doído e dopado
de uma menina de 16 anos
na cidade maravilhosa.
No Brasil,
a cada 11 minutos,
uma mulher
é violada
– são 9
no tempo
de uma partida de futebol
com acréscimos.
50 mil mulheres
são as que declararam
terem sido violentadas
no espaço
de 12 meses
num beco
num quarto de criança
numa cama de casal
com crucifixo em cima.
Outras
90%
se calam
já que
dos estupradores
6%
em 26 estados
e um distrito federal
são levados a julgamento.
Ontem
33 caralhos
invadiram o corpo
dopado e doído
de uma menina de 16 anos
na cidade maravilhosa.
Hoje
33
é um número doente.
Seria menos triste
se tivessem sido 33 tigres
33 tubarões farejando sangue
33 ratos de esgoto...
Mas eram homens.
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O deserto vermelho
Simone Teodoro
Em minha solidão
mora um mar
de água transparente
e uma praia carmim
Como num filme
de Antonioni
Chego ao mesmo
tempo que o Sol
Parto quando a luz escapa
por uma fenda
no céu
Em minha solidão
moram coelhos selvagens
E um dia
de longe
vi um veleiro fantasma
desses que singram
os mares daqui
e os mares dos mundos
do lado de lá
Como num filme
de Antonioni
em minha solidão
as pedras cantam
como se fossem de carne
e doessem
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Um fóssil pinaúna
Alex Simões
um fóssil pinaúna não
é belo por não ter espinhos.
pelo contrário, sua beleza
reside justamente no
fato de um dia ter sido
ente espinhoso e peçonhento.
chamado echinos ou ouriço
deslocando-se por meio de
pés ambulacrários retractéis
em busca de algas, detritos
e pequenos invertebrados.
não um fóssil pinaúna
– corpo globoso e disciforme –,
a carapaça sem espinhos,
mas um indício de que houve
ali um modo de existir,
portanto, de resistir,
toda existência resistência,
beleza da resiliência,
sendo aquilo que nos fascina
não só o agora suave ao tato
como também o que outrora
nos disse belo em seu mover-se
tal qual é belo o seu fixar-se
– lembro as hastes pretas movendo-se
depois pontos pretos nos pés
doloridos da então criança -
sobre difíceis superfícies,
ludibriando o predador,
ou qualquer coisa que o valha.
lição da pedra que machuca
porque a beleza do difícil
é não mostrar-se no que mostra.
um fóssil pinaúna não,
um modo de dizer-se vivo
porque toda beleza fere.
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De mãos dadas no museu
Angélica Amâncio
E a cidade foi se tornando
uma grande desculpa
para estar ao seu lado.
Cada concerto, exposição, circo de pulgas
cada parque, torre, arco, cemitério:
um detalhe
um fundo verde
para a sua figura,
a sua brancura,
o seu espetáculo de pelos.
E eu,
que sempre gostei de estar sozinha,
percebi que nunca antes de fato
havia estado
acompanhada.
E agora
você parte.
E eu passo
de alguém-com-você
para alguém-sem-você
num passe de mágica
num estalar de dedos
num corte
seco.
Então
vou beber o luto
rodopiá-lo
manchá-lo de batom e perfumá-lo
com o aroma dos cedros
que você guardava entre os dedos.
Porque aprendi a ser
como os goleiros
que sabem cair
e se levantar
depressa
antes que algo
muito pior aconteça.
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Sobre bichos e bichos
Márcio Oliveira
Faz quase três quartos de séculos
que Bandeira testemunhou um bicho
revirando o lixo
para encher o bucho,
e no final o bicho não era bicho;
quer dizer, era bicho humano,
mas de si destituído,
como as ratazanas famintas
que deslizam pelos cantos
esconsos do centro
fétido da metrópole.
Quem circula pela metrópole
na adolescência do século XXI
vê os descendentes do bicho de Bandeira
fumando algo que já não se parece com cigarros
e que os transforma em entidades elétricas,
com os olhos incendiados,
emergidas de tocas e covas
para estragar a paisagem
e a paz dos cidadãos de bem.
Os novos bichos ainda reviram o lixo
para acalmar o bucho
quando o bucho protesta.
Isto é:
os bichos pobres ainda comem
o desperdício dos bichos ricos,
ou nem tão pobres
que não possam deitar fora
o que não cai bem no paladar
dos bichos não humanos
guardados dentro de casa.
E para registrar tal situação
sempre haverá um fotógrafo,
um cronista,
um poeta de estômago cheio,
plenos de boas intenções
e prontos para mostrar
que o tempo passa,
mas por si só não transforma nada:
nem o fotógrafo, o cronista e o poeta,
revestidos com outra cara,
de nomes trocados,
disfarçados em outro estilo,
arredaram pé da posição em que se achavam:
continuam atrás da máquina que desfecha cliques,
agora digitais,
da tecla sem o ruído seco de outrora,
da tela eletrônica desprovida de textura,
mas porosa em todo caso
à perplexidade de sempre.
Angélica Amâncio, Simone Teodoro,
Alex Simões, Márcio Oliveira, Vitor Queiroz,
Almandrade, Heitor Dantas e Wladimir Cazé
Lembrança de Nosso Senhor do Bonfim da Bahia
Vitor Queiroz
1
Braços pernas cabeças.
Senhor do Bonfim. Fel bandeide cera votiva. As tuas chagas são as bocas de lodo da Bahia.
A tua auréola de prata tem uma grinalda de endereços.
Ruas praças. Abaetés. Bifurcações perdigueiras, avenidas.
2
Arcanjos celestes baratas formigas besouros. O Bahia e o Vitória
Brotas Cajazeiras Jorge Amado e os anéis de Saturno enfeitam os espinhos da tua coroa.
3
Rococó. Linha gesso agulha. Lázaros escalpelados.
O surdo, anões o mudo feldspato o aleijão e o paralítico rogam ao teu fêmur setecentista.
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Um lance
Almandrade
Ainda
o mar de Homero
habita
o céu da história.
Um lance
de dados e textos,
jogo da literatura.
Pensar é
abrir portas,
migrar
para o desconhecido.
Impossível se achar
um limite.
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Contas a pagar
Heitor Dantas
Todos temos contas a pagar
Por isso somos tão saudáveis
E maldizemos o mel do inimigo
Contas a pagar
Nosso andar barulhento
A buscar
Pelas portas abertas
Nosso nascimento
Pelos falsos poetas
E agora isso é certeza
Todos temos contas a pagar
Não há poder que mude nossa natureza
O que muda são os planos
O que temos
E o que somos
Não há mudança que nos impeça
Na dor inflamável dos grilos e centopeias
Todos temos contas a pagar
E a odisseia
O que impede não é o tempo
Quem dá menos?
E o que somos?
Contas a pagar
Justo no momento da ceia
E o que conta não são os salmos
Respira e escreve na areia:
“O que temos é o que somos”
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Molusco
Wladimir Cazé
O vento sopra
sobre a rocha
onde a concha
dobra o som
dentro: outro
sopro venta.
A onda quebra
contra a pedra;
o mar não cessa
de pôr no casco
do molusco em colapso
o tempo quase intacto.
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O ocaso do antagonista
Márcio Oliveira
Após décadas de inimizade,
foi despachado hoje ao cemitério
o meu maior inimigo.
Não, não posso falar assim.
Se honesto quero ser,
devo dizer de outro modo:
perdi-o.
Já chorei muitas perdas nesta vida:
de eras a performances,
de ilusões reluzentes a convicções desesperadas.
Entretanto, como me dói esta!
Recordo as insônias que dediquei ao inimigo,
infligindo-lhe humilhações, desventuras,
pejos, reveses, golpes, infortúnios, ciladas,
sinistros acidentes.
Repasso a fisionomia repuxada e ruborizada
que lhe punha na cara
quando o desacatava em público,
saboreando a fictícia vingança,
em minha infinita valentia mental.
E agora cai sobre a minha cabeça
esta tremenda epifania:
nunca o figurei morto,
por soar-me insuportável a hipótese.
Choro-lhe hoje o cadáver deplorado,
abandonado à intempérie,
entregue à solidão escura do subsolo.
Choro-lhe o filho que o chora.
Choro-lhe o último gesto,
a última palavra,
esta cidade desolada
sem sua presença contagiosa.
É por uma pequena sobra de orgulho
que não suplico à viúva
um abraço calado de solidariedade
que nos unifique no mesmo luto.
Pode a campainha implorar,
o telefone, feito cigarra, estourar de tanto tocar,
alguém vir anunciar que tirei a sorte grande
no maior prêmio.
Eu não estou para nada.
Só quero estar só,
chorar só.
Porque, nesta terrível primavera,
em que o sol me sorri com ironia,
morreu o meu avesso.
Presentes na revista Organismo nº 3, organizada por Orlando Pinho e Zéfere.
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