Murilo Rubião (foto daqui)
“O advogado, que permanecera na sala, indagou: – Por que acusam o meu cliente de traficante de drogas, se antes o incriminavam de estuprador e cúmplice de centenas de adultérios? (...) – Que ingenuidade, amigo. Você está há pouco tempo entre nós e ignora que aqui só prevalece a vontade do Juiz, proprietário da maior parte das casas da cidade, inclusive dos prédios públicos, da companhia telefônica, do cinema, das duas farmácias, de cinco fazendas de gado, do matadouro e da empresa funerária. Se decidiu que esse palhaço cometeu outro delito, não nos cabe discutir e sim preparar as provas necessárias à sua condenação. (...) – Penso que o seu dever é agir com imparcialidade, conforme declarou anteriormente, e impedir o arbítrio dos poderosos. (...) Nesse instante, em frente à Delegacia, a população começou a vociferar: Lincha! Mata! Enforca! (...) O oficial parecia se divertir com a situação: – O seu constituinte não tem muitas chances de sobreviver. Alguém cuidará dele. A Justiça ou o povo.”
“O botequineiro, que ostenta no corpo diversas tatuagens – todas alusivas a amores passados –, diz que são ‘artes de rabo de saia’. Discordo: marinheiro velho lembra-se de mulher somente para ter saudades do mar.”
“Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça. (...) Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis. (...) Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência. (...) Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos. (...) Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria do Estado. (...) Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo. (...) Quando era mágico, pouco lidava com os homens – o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.”
“– Já temos vadios de sobra nesta localidade. O que veio fazer aqui? – perguntou o policial. (...) – Nada. (...) – Então é você mesmo. Como é possível uma pessoa ir a uma cidade desconhecida sem nenhum objetivo? (...) Caminha, dentro da noite, de um lado para outro. E, ao avistar o guarda, cumprindo sua ronda noturna, a examinar se as celas estão em ordem, corre para as grades internas, impelido por uma débil esperança: – Alguém fez hoje alguma pergunta? (...) – Não. Ainda é você a única pessoa que faz perguntas nesta cidade.”
“Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas. (...) Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém.”
“Aos que lhe tomaram a defesa, anos após a sua morte, perguntavam: – Afinal, o que fazia esse d. José? Se não fumava, não bebia, não tinha amantes? (...) – Amava o povo. (...) – E o povo? (...) – Observava-o com ferocidade.”
“Pediu o oceano. (...) Não fiz nenhuma objeção e embarquei no mesmo dia, iniciando longa viagem ao litoral. Mas, frente ao mar, atemorizei-me com o seu tamanho. Tive receio de que a minha esposa viesse a engordar em proporção ao pedido, e lhe trouxe somente uma pequena garrafa contendo água do oceano. (...) No regresso, quis desculpar meu procedimento, porém ela não me prestou atenção. Sofregamente, tomou-me o vidro das mãos e ficou a olhar, maravilhada, o líquido que ele continha. Não mais largou. Dormia com a garrafinha entre os braços e, quando acordada, colocava-a contra a luz, provava um pouco da água. Entrementes, engordava.”
“– Não vê, José, que Batista está abusando de você? Todos os dias come da sua merenda, copia seus exercícios escolares e ainda banca o valente com os outros meninos, fiado nos seus braços. Todavia, quando os moleques lhe deram aquela surra, nem se abalou para ajudá-lo. (...) Era uma injustiça. Batista não viera em meu auxílio, como explicou em seguida, porque fora acometido de cãibra justamente no momento em que fui agredido.”
“D. José odiava alguém? (...) Calúnia! Amava a mulher, os pássaros e as árvores. Ela, sim, detestava-o, irritava-se com os animais. (...) Infelicidade conjugal? (...) Nunca! Os esposos combinavam admiravelmente bem. (...) Mas, entre os habitantes do lugar, não havia quem acreditasse nisso: – Ela finge amá-lo somente pelo seu dinheiro. (...) Estúpidos! D. José era o homem mais pobre da cidade e tinha uma úlcera no estômago.”
“Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. Havia ainda o medo que sentia, desde aquela madrugada, quando constatei que a morte penetrara no meu corpo. (...) Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência.”
Trechos presentes no livro de contos Obra completa (Companhia das Letras, 2016), de Murilo Rubião, páginas 232-233, 37, 19, 31-35, 17, 141, 24, 185, 140 e 13, respectivamente.
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