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Os dez melhores poemas da revista Organismo #02



Izabela Orlandi

eu sempre te disse que queria morrer
em um lugar devastado como dentro
do seu útero.

um lugar sem som em que meus olhos
encarassem o vazio que vi
enquanto você adormecia

eu tenho certeza que sentiria
o mesmo prazer de quando senti
o seu pau e a noite e você
sentiu os meus braços
e a essência

eu tenho certeza que essa morte seria
vazia e nossos restos não produziriam
mais um único
som

nós estaríamos mais próximos da carne
e não a usaríamos como desculpa
obrigação e refúgio

neste lugar colaboraríamos com o silêncio
como sempre desejamos em vão

--------

Chapeuzinho Vermelho
Carollini Assis

Enquanto seu lobo não vem,
visito o lenhador.

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Cântico dos cânticos
Lívia Natália

Sua boca banha minha outra boca
nela, os lábios desabrocham
como pétalas perfumosas.
Sua boca banha minha outra boca,
enquanto minha mãos rasgam,
no ar,
as sutilezas.

Sua língua lambe minha palavra mais secreta
que, ereta,
canta o vigor desta estação.

Sua língua dança numa conversa matreira,
mergulhada nas dobras da caverna
onde se demora,
e te torna presa, entre as minhas pernas.

--------

Leão
Martha Galrão

De repente
o alumbramento
sua bravura flutuando em ondas.
Antevi sua nobreza
a flor de lótus que brota
do seu umbigo.

Como esconder dos mortais
sua coloração castanha
impressa em minha íris?
Como esquecer
o delicado roçar das cabeças
a cernelha, as lambidas?

Corro, louca, pelas savanas
tomada pelo desejo
que você, carnívoro,
me apanhe e me coma
metade homem, metade bicho.

--------

Drumondiana
Líria Porto

meu grande amor por luigi
ardeu nos braços de juan
que amava sua judith
mas se tornou meu amante

(ninguém se perde
todos se aproveitam)


Izabela Orlandi, Carollini Assis, Lívia Natália,
Martha Galrão, Líria Porto, Alex Simões,
Iolanda Costa, Lorenza Mucida e Luana Muniz
(não encontrei foto de Gustavo Arruda)


IV
Alex Simões


uma
crise
no
mundo,
dizem,
uma
guerra
internacional
iminente.
entretanto,
para
minha
egoica
alegria,
sua
bunda
balança,
indiferente.

--------

Colar de absinto
Iolanda Costa

do colo ao quadril adorna
e flamba a carne
adereço que a restaura, abjurada
em chamas.
formoso é o pescoço
e as sete vértebras
que o estende aos ares:
lava, pira, serpe.
o pescoço de labirinto e de fogo
por onde ardeja, verde
o absinto que me trazes.
a losna-maior farfalhando
como folha (em nervuras e exílio).
teus delírios.

--------

Espartilhos
Lorenza Mucida

Como quem possui boca profunda
E olhos de fendas
Penetras a ribeira
Voas ao descompasso
E dispara em grito-gozo
O que se abre em braço de fúria
Em lama de consternação
Acredita que o amanhã virá
Vestido em carmim e espartilho

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Luana Muniz

é peçonha antiga que
escorre gelatinosa
do pau de Marcelo
e me sinto então clarividente
a mão em concha em seu peito
deixo-me levar
porque ele dorme o sono
dos monges tibetanos
e penso logo,
como quase sempre
quando me acontecem estas coisas,
em Proust.
penso que tenho
23 anos
o pau flácido de Marcelo
em minhas ancas
sim, tudo isso
mas eu nunca li
Proust.
que importa?
a vida é bela
eu nunca ouvi a voz de deus
nada além da pele descascada
como um limão siciliano

quem precisa
de Proust?

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O recôncavo elétrico (fragmento 1)
Gustavo Arruda

o desfile do mistério da velocidade que circula a entranha dos sobrados lotados de pus refletem essa penca de colares de prata barata. no teu pescoço devorado pelas dentadas da deusa farta cola o peso de naturezas mortas. noites à beça. vermelhos à beça. trocas de pele.




Presentes na revista Organismo nº 2, organizada por Cazo Fontoura e Daniela Galdino.

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