Daniela Galdino - Foto: Ana Lee
Vagar lume
Daniela Galdino
a covardia como evangelho
deita o amor na vala comum
queima tardes promissoras
nove adiamentos novos
somos palavras conhecidas
comprimindo o indizível
giram os céus e os templos
folhinhas anunciando virtudes:
heroísmo fajuto a fazer desonras
esperdicemos tubos de avidez
aos dias nós obrigamos o esbanje
depois, na janela de algum trem,
(in)felizes veremos passar o desejo
tocaremos a derradeira corda
de um alaúde troncho
e caminharemos apartados
na vergonha de não termos sido
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Arada
Daniela Galdino
ostento cara de terra
espírito de poço
índole mar
remota felicidade
sempre tive
irrigada padeço
estranheza, pra mim,
é abre-te sésamo
vagueio em cova funda
porque estou semente
gozo no sereno
inerte
numa pedra de amolar
corro as sete freguesias
e fastio não me alcança
levo fachos de gritos
aonde me querem muda
replantando-me
dou cestos fartos
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Afluentes
Daniela Galdino
floresta de pelos
no travesseiro
colchão encardido
cílios flutuam
são polens
na manhã sem janela
pentelhos vagueiam
são fiapos
na procissão das formigas
(pausa doméstica)
ando farta
de comer o mundo
tenho festas
na esquina do silêncio
faço cestas
tranço fios de esquecimento
andas farto
de sorver os desencontros
cambaleias
na viela do receio
trazes mate
fazes combustão da dor
varar (n)a madrugada:
existir é rota de colisão
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Céu em si
Daniela Galdino
estes tons impróprios
desandam o dia chuvoso
a pele ao domingo
a pele ao crepúsculo
a pele ao abismo
o sonho vedou a casca, os cantos
o sonho escorre pela cama
lança rachaduras no prédio
asfixia o elevador, a escada
o sonho verteu gotas, gritos
silêncio de abismos nas casas
de crepúsculo nas ruas
e domingo nas cercas
o sonho relincha nos entrepostos
paralisa tomadas
apaga ponteiros
o sonho deita nas encruzilhadas
na cama, homem de anil
esquece rota de fuga
soletra vagares, pulsações
evita o banho a que se destina
recorda o pássaro em desatino
alma voraz que lhe abriu a fenda
está refeito o homem de anil
sem terra que sustente o passo
afagado em fonte luminosa
desabrigado de regas
desobrigado de reinos
goza em looping a descoberta:
cu de céu. infinita-se.
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Pantanal
Daniela Galdino
parti o vibrador pela raiz
(broto interrompido)
agora em mim só gilete
num entra-e-sai desmarcado
parti o vibrador pela raiz
vai morrer a noite
na posição dorsal
sem concluir a chuca
passando cheque ao portador
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"o amor é um crime
cujos vestígios
apagaremos
dos nossos corpos"
"em tua boca
a palavra puta
é balão inflado"
"quem respira terremotos
inibe a calma de hesitações
deito-me na barcaça do sonho
ofereço-me grandezas:
esta cachoeira
que se oculta
em minhas pernas"
Presentes no livro de poemas Espaço visceral (Segundo selo, 2018), páginas 75, 31, 67, 41 e 47, respectivamente, além dos trechos dos poemas Trilha (p. 57), Conversa de molhares (p. 37) e Um pé de água (p. 17), presentes na mesma obra.
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