Izabela Orlandi - Foto daqui
Izabela Orlandi
era claro e havia o bicho
e só quando escuro
havia o homem
era claro e havia o silêncio
e só quando escuro
havia a palavra
você insistiu
em negar todas as noites
e a exatidão
me perguntava
todos os significados
mas eu te fiz o escuro
de olhos abertos
sente só: o ar que eu
passei entre os seus dedos,
só assim é bicho e homem
é silêncio e palavra
e mar
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Inevitável
Izabela Orlandi
Visito à noite um cemitério,
se aqui você pudesse me tocar
sem palavras
sem objetivo
sem relógio
espreitando a morte
celebraríamos a vida?
Aqui me dispo dos toques que guardei
e inebriada pelo álcool
o cheiro da morte
escorre fervendo
pela pele.
Por estar sozinha
se torna secreto
o visível gozo
da fuga.
(já se desfaz a lembrança de onde estamos.)
Mal-me-quer
bem-me-quer:
Sei que você não enxerga
nenhuma flor aqui.
(eu destruí todas)
Se desfaça com calma
da brasa que te queima
e faz viver a sua eterna
coleção de memórias.
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Paisagens
Izabela Orlandi
A casa sólida e ampla
dos áureos anos 40,
em que todo dia a menina
subia com seu avô a escadaria,
era a construção mais sólida
da Rua Amadeu.
A mãe observava do quarto
a longa jornada dos dois.
A se perder de vista,
tantos eram os degraus,
a menina confiava ao avô
o esplendor de um dia
visto por olhos banais.
As mãos fortes do homem
colhiam frutas de alvo sabor,
frescas verduras e ovos ainda quentes,
que enchiam a cesta de vime.
Eu poderia contar agora
sobre a geleia que a avó preparava.
Aroma de invejar qualquer um
que na rua passava.
Mas o que se deve incluir
na descrição dos cenários?
Folhas e frutas colhidas
ou as grades cinzas
que no cenário da casa
invisíveis eram, mas
que prendiam além da mulher
que o crime cometeu,
a voz e a vida de todos
por anos a fio?
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Que seja
Izabela Orlandi
tudo me dá
asco
a mão que pesa
a ferocidade
instantânea sobreposta
pelo desejo
das tormentas apáticas
a cumplicidade
que você me dispõe
me dá asco
acesso
de ternura
a blusa mais bonita
que rasgo com
a tesoura de metal
(tem que sentir
o gelo e a ponta
finíssima)
logo o ato
vira asco
o pulso
se mostra braço
inteiro que ali continua
pendurado no corpo
inútil
a masturbação
só pelo hábito,
metade santa
e o gozo
no rosto sem pudor,
metade vândala
o comprimido
o whisky às quatro
o sexo a três
punheta
filme pornô
amor
vira o vômito
o asco morno
em pedaços
o seu sorriso raso
a praça da Sé
o beijo que foi
grito
tantos, tantos
livros
tudo traça
ácaro,
asco.
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izabela orlandi
não há silêncio
no gozo pois
a palavra muda é
respiração
dedos e nós
suor que escorre
no vão dos bichos
vivos
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"Gozo ao estar sozinha
e perceber
que ninguém pode me ajudar."
"A água, certamente,
parou de irromper do céu. Para ela,
era esse o fim da tempestade. Para mim,
as janelas quebradas
eram a prova de sua eterna permanência."
"o gozo a sentença é sermos pele
recorrente furo na parede negado
mas a primeira e única comoção
foi o medo das suas primaveras
naufragando
o terror absoluto do cheiro de carne
queimando"
Presentes no livro Vão dos bichos (Patuá, 2015), páginas 07, 39, 61, 22 e 10, respectivamente, além dos trechos dos poemas A gaivota (p. 25), Seca tempestade (p. 72) e Gestão emergencial (p. 13 e 14), presentes na mesma obra.
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