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Crônicas: Barquinho Amarelo

Outubro de 1985


Na legenda do álbum de fotos da infância, D. Martha [minha mãe] escreveu: “Salvador, 7/10/85. Aniversário de Mirdad de 5 anos na escola ‘Barquinho Amarelo’. Ele está aí com a 1ª paixão”. Na foto, me impressiona a cumplicidade do abraço, como a menina entrelaça confortavelmente seus bracinhos no pescoço do menino, e ele retribui o enlace com as mãozinhas em força, no típico entrelaçamento robusto de quem possui por amor. Primeira paixão. É algo tão remoto e inocente que nem restou o nome. Como você se chama? Quem é você? Aliás, o que você se tornou?


No poema “Amor à primeira vista”, a poetisa polonesa Wislawa Szymborska, em tradução de Regina Przybycien, diz: “Porque afinal cada começo é só continuação e o livro dos eventos está sempre aberto no meio”. Este trecho é lindo e de uma intensa verdade. A cada novo amor que a sorte e a persistência nos proporciona, continuamos o melhor do legado afetivo construído em parceria com quem passou por nós e leva agora a alcunha de ex-amor [no melhor dos casos, um amor e não ex].


É impossível considerar meus feitos ou apenas pedaços vividos na rotina e as melhores lembranças sem entrelaçá-los à importância afetiva de cada amor que vivi. Como digo no poema “Inhame”, cuja síntese me satisfaz plenamente: “Sou o mais chapado de todos: não bebo, não fumo, não cheiro, nem injeto ou dissolvo; eu amo”. Eu preciso amar, sempre. Sou a antítese do estar solteiro, não consigo, embora a coincidência force-me a tanto. As relações acabam, mas o sentimento não.


Nunca reduzi à condição de “esteja comigo” para quantificar se há amor ou não pela parceira. Isto é muito pouco; revela a face da posse como hábito de quem não está propenso à compreensão. Mas deixo que cada uma conduza o pós-relação da melhor forma que seja para si. E geralmente o resultado é bem doloroso para mim; uma porta é melhor tratada do que a depreciativa alcunha de ex.


Será que você foi bem amada? Sobreviveu sem sequelas emocionais às inevitáveis traições dos homens de vinte anos? Foi preterida por outra, abandonada quando tinha sido mais entregue, surpreendida pelos descaminhos que o destino soterra os sonhos a dois [quando a força do que deve ser feito é sempre mais importante que o delírio de estar junto a qualquer custo]? Ou se casou com um longevo amor lá de sua adolescência ou colégio/faculdade, transformando-se numa mulher de poucos falos, tediosa balzaquiana de passeio em Shoppings e prazer por chocolates?


E se hoje, quase trinta anos após o nosso primeiro encontro [fomos coleguinhas desde 1984], você estiver morta? Ou mãe de dois filhos? É possível, mãe ou morta. Considerando nossa sociedade baiana, a probabilidade de você ser uma visionária destemida, uma intrépida sangue no olho, focada em seus objetivos ou solta no mundo, uma admirável mulher dona de si com um vasto conteúdo e questões a responder, hetero ou lésbica, é muitíssimo pequena. Uma pena – perdoe-me pelo preconceito, é só o meu melhor desejo para que você seja feliz e uma linda mulher, referência de feminilidade e beleza.


Niver de Mirdad em 1985 na Barquinho Amarelo


A “Barquinho Amarelo” funcionava na Barra, no Jardim Brasil, próxima ao primeiro lugar que morei, Edf. Barraville, na Rua Florianópolis. Comecei minha vida escolar nessa escolinha, frequentando-a em 1984 e 1985, antes de seguir com a família para o Sul da Bahia em 1986. O tal aniversário de cinco anos foi uma festinha toda arrumada por minha mãe, a atenciosa e amorosa D. Martha. Não me lembro de porra nenhuma dessa festinha. Só restaram as fotografias.


Interessante visitar as fotos da infância perdida. São tantas crianças desconhecidas, sem referência alguma. Quem são vocês? Que crueldade à curiosidade não saber quem são vocês, quem vocês se tornaram! Será que já conversamos 20 anos depois? Será que já fechamos negócio e não sabíamos? Trinta anos depois, será que algum de vocês foi à Flica? Fomos parentes via cunhados? Ficamos numa balada qualquer, encontros casuais de bocas famintas?


Quase não me lembro de você, doce menininha, primeira paixão. Relatos familiares espaçados informam que meu menininho de três anos, há trinta anos [quase], fulminou-se de paixão desde o primeiro contato em 1984 – plenamente possível, sou um fã incondicional do sortudo e bem raro “à primeira vista”. A única lembrança que restou foi a glória de ter desfilado ao seu lado no sete de setembro: é a primeira memória cristalizada de amor vivenciado que guardo.


Doce menininha, que agora é uma mulher feita [ou morta], provavelmente com a mesma idade que tenho, nascida entre 1980 e 1981, perdoe-me pela exposição e constrangimento. O único sentido disto aqui é agradecer-lhe por ser a origem do meu primeiro afeto, que causou o vício confesso e interminável de vivenciar o amor em formas cíclicas, último romântico que sou. Como se diz muito na Bahia, valeu!


Trilha sonora desta crônica: Solidão nº 4  do pianista Vitor Araújo.



Comentários

Ana Gilli disse…
Entrelaçados, é isso mesmo...

Sinto que levamos conosco, misturados e integrados ao nosso ser os Amores de nossas vidas. Amores que vão além de títulos tais como amigo, colega, namorado, esposa, de ontem ou de hoje. Amores por pessoas, parceiras de jornada.

O Amor se houve, não acaba. De tão forte que é se transforma e se adapta aos novos feitos e pedaços de rotina e, principalmente, se liberta de julgamentos, exigências e expectativas porque não necessita de condições e retorno para existir.

E como as existências se manifestam de infinitas formas, fiquemos em paz e com fé de que mesmo distante e em condições variadas ou adversas, o Amor, se um dia houve, continua a Vida em cada um de nós.

Com relação a saber sobre o Amor do outro, não queira. A única forma de viver o Amor é sendo em si mesmo o Amor.

Mirdad, gratidão por tudo o que você é! Gratidão por estar sempre presente e ser em mim uma manifestação de amor gerada de maneira tão sincera e carinhosa.

Cuidemos do Amor que há em nós.

Estejamos bem.

Te amo
Ana
Emmanuel Mirdad disse…
Muito bonito, Anagê, emocionado por aqui. S'u sim sim!

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