Sobre o cancelamento das mesas “Donos da Terra? – Os Neoíndios, Velhos Bons Selvagens”, com Demétrio Magnoli e Maria Hilda Baqueiro Paraíso e “As Imposições do Amor ao Indivíduo”, com Jean-Claude Kaufmann e Luiz Felipe Pondé, da Flica 2013.
Emmanuel Mirdad
Esta nota não representa a posição oficial do evento Flica e trata-se de uma opinião minha enquanto profissional responsável pela curadoria da programação literária (ao lado de Aurélio Schommer) e pela coordenação geral (ao lado de Marcus Ferreira e dos diretores da Icontent/Rede Bahia), além de interlocutor da organização com os manifestantes que impediram a realização da mesa “Donos da Terra? – Os Neoíndios, Velhos Bons Selvagens” no último sábado pela manhã e exigiram o cancelamento posterior da mesa “As Imposições do Amor ao Indivíduo” que seria realizada à noite.
Primeiro quero me dirigir ao público presente no Claustro do Conjunto do Carmo, local da programação principal da Flica 2013, e ao público ligado na transmissão online da mesa, interessados em assistir ao até então considerado o grande debate desta edição, a mesa “Donos da Terra? – Os Neoíndios, Velhos Bons Selvagens”. Digo grande debate porque os participantes eram de posições completamente contrárias, e estavam tranquilos e dispostos a expor seus argumentos com elegância e respeito. Tentamos de várias formas dialogar com os 30 estudantes envolvidos no protesto, com paciência e educação, mas em toda abordagem o discurso foi o mesmo: “Sem diálogo! Fora Demétrio!”. Reprimiram a mesa a uma única condição: cancelamento imediato. A única forma de parar o ato seria reprimir da mesma maneira, retirando os 30 estudantes do espaço, o que, devido ao estado alterado deles, teria de ser à força, o que poderia ocasionar um desfecho muito mais problemático do que foi.
Lamento profundamente o cancelamento. Agradeço a disposição da professora Maria Hilda Baqueiro Paraíso em tentar por duas vezes o diálogo com os estudantes, inclusive oferecendo-os o microfone, mas assim como nós, a resposta foi a mesma descrita acima. Quando a mesa começou, Maria Hilda e Demétrio Magnoli fizeram suas primeiras colocações, e já na segunda rodada, o que se viu foi a primeira réplica por parte de Maria Hilda, e na hora da tréplica, Demétrio e a mesa foram interrompidos. A sensação de frustração foi enorme. Seria um grande debate, uma oportunidade única. O que os estudantes não entenderam é que o debate sobre cotas está superado, e o tema da mesa eram as questões indígenas, tão urgente e necessárias, tanto pela matança histórica ainda presente e a necessidade de reparação quanto pela vitimização e mau-caratismo da auto declaração. Como disse brilhantemente meu amigo Aurélio Schommer, "Democracia é permitir que falem o que eu não quero ouvir". Os 30 estudantes não permitiram que as demais 300 pessoas presentes (e a grande quantidade online) ouvissem. Pior: por causa de uma discussão já ultrapassada e que não tinha a ver com a proposta do debate.
Fui em cada estudante, um por um (exceto os artistas que faziam a performance e que ainda bem não tocaram no palestrante), contra-argumentando que seria a primeira vez que eles poderiam ver Demétrio tão próximo, fora da (assim classificada por eles) “hegemonia” que tanto criticam, com a oportunidade de ter suas ideias contestadas por sua opositora, extremamente qualificada, no debate. Tristemente mantiveram a única posição do grito de ordem e a imposição ditatorial do fim do debate imediato ou conflito. A Flica proporcionou este encontro com muito esforço, e eu quero agradecer muito a confiança de Demétrio Magnoli na organização do evento, que em momento algum se sentiu de fato ameaçado, passeando por Cachoeira todos os dias, vivenciando a cidade de que tanto gosta acompanhado por sua esposa, conferindo inclusive a bela mesa de encerramento com Makota Valdina e Pepetela.
Mais que o dobro do número de estudantes nos procuraram pessoalmente para demonstrar sua revolta com o ato. Inclusive outros estudantes da mesma Universidade e moradores de Cachoeira. Intrigante foi ouvir de cachoeiranos que os 30 estudantes eram de outras cidades, só estudavam e não os representavam. Os cachoeiranos de fato que nos procuraram estavam com medo que a Flica terminasse por conta do ato. A cidade abraçou o evento desde o início, e a Prefeitura inclusive é um de nossos patrocinadores. O Prefeito Carlos Pereira é um entusiasta do evento. Acalmamos a todos e aproveito para reafirmar: a Flica continua, e no final de outubro de 2014 teremos a sua 4ª edição. Desconheço outro evento cultural do tamanho e importância da Flica, realizado por uma empresa PRIVADA, que tenha todas as suas programações GRATUITAS.
Por falar em intriga, como não refletir e encontrar a incoerência ululante após reconhecer diversos dos 30 estudantes à noite do mesmo sábado dançando e curtindo o show de Armandinho na praça, completamente lotado aberto a todos? Mais ainda: encontrei alguns assistindo maravilhados a mesa com Makota Valdina e Pepetela, aplaudindo e felizes. No dia anterior, impropérios, palavras de ordem e acusações infundadas ao evento. No dia seguinte, celebração. Assim não dá.
Estou profundamente triste por ter sido acuado, enquanto participante da organização e da curadoria, e coagido a cancelar a mesa “As Imposições do Amor ao Indivíduo”, com Jean-Claude Kaufmann e Luiz Felipe Pondé. Foi dito abertamente na interlocução com os 30 que, se não cancelássemos a mesa, eles não sairiam do Claustro, o ato continuaria (como poderíamos conduzir as duas mesas da tarde, com Joca Reiners Terron, Tom Correia, Leticia Wierzchowski e Carola Saavedra, neste cenário inflamado?), e poderia inclusive ser amplificado, com a chegada de novos estudantes que estavam fazendo o Enem. Afirmaram que se puséssemos para fora na marra (o que nunca foi cogitado), invadiriam o recinto com um grande contingente. Muitos podem nos acusar de covardes ou coniventes, mas estão equivocados como os 30. A melhor decisão naquele momento de negociação em que não tínhamos nenhum parâmetro da capacidade de mobilização do grupo, foi ceder para garantir as mesas da tarde num clima tranquilo (como aconteceu), e a própria realização da Flica em outros espaços como a Varanda do Sesi, a Fliquinha e o Palco Musical. Aproveito para ressaltar que, embora equivocados em interromper a mesa e arbitrários e irresponsáveis em coagir a não realização da mesa à noite, os 30 estudantes cumpriram sua parte no acordo firmado, assim como nós, e não praticaram nenhuma violência física aos palestrantes e membros da produção e segurança ou quebra-quebra. Tiveram seu espaço para esclarecer as causas do ato, e este momento considero importante, pois o público precisava entender a justificativa do injustificável. Até mesmo para que os cachoeiranos e os demais estudantes e grupos organizados da universidade saibam quem são e o que pensam, assim como nós.
Digo isto porque preciso prestar contas ao público infinitamente superior que foi prejudicado pela decisão arbitrária e anti-democrática de 30 estudantes. Interromperam a mesa da manhã por causa de uma discussão anacrônica e já superada: as cotas raciais. Oprimiram a realização da mesa da noite que o tema era as relações amorosas e suas implicações no indivíduo, ou seja, resumindo: o tema era AMOR. Por uma inacreditável incoerência, impediram que um sociólogo gabaritadíssimo, reconhecido e um dos mais importantes especialistas no tema no mundo, best-seller na França, que enfrentou uma longa viagem, cancelou compromissos para estar em Cachoeira, ocupadíssimo com diversas responsabilidades, aceitou o convite porque conseguimos furar os filtros da agência literária e da editora e o convidamos pessoalmente por conta da querida amiga Irene Kirsch, o cordial e disposto Jean-Claude Kaufmann, não pode falar na Flica. Ele ficou terrivelmente chocado. “Mas o Brasil não é uma democracia?”. Não sei mais, meu amigo. Desculpe-nos. Vergonha. Vergonha. E Luiz Felipe Pondé, com uma agenda ENTUPIDA de compromissos, conseguiu uma janela exclusiva pra chegar em Cachoeira 2h antes da mesa e ir embora seis da manhã do domingo, veio disposto para esse grande encontro para falar de afetividade e a complexidade das relações no indivíduo. Ficou chocado. Nós também.
Este ato dos 30 foi um imenso desperdício. Como disseram meus amigos do movimento negro que entraram em contato comigo, “não deram um tiro no pé não, deram um tiro na cabeça”. Perderam a chance de se manifestar de fato. Fizeram um ato bárbaro, opressivo e ditatorial. Não se consegue um espaço com a força. Já foi assim, agora nunca mais. Diálogo sempre. A Flica é e sempre foi imparcial e democrática. Continuaremos assim.
Aos caros autores Maria Hilda Baqueiro Paraíso, Luiz Felipe Pondé, Jean-Claude Kaufmann e Demétrio Magnoli, aos cachoeiranos, à imensa maioria democrática de estudantes da UFRB, aos patrocinadores e apoiadores, à imprensa e sociedade civil, minhas sinceras desculpas, acredito que tomamos a melhor decisão para o momento e aproveito para afirmar: a Flica continua, proporcionará debates ideológicos SIM, e estaremos atentos às medidas possíveis para assegurar que os encontros democráticos aconteçam em Cachoeira assim como foram tranquilamente realizados em 2011 e 2012.
Aos 30 estudantes presentes no ato: ainda há tempo de mudar. Diálogo, sempre. Por favor.
Emmanuel Mirdad
Coordenação Geral e Curadoria da Flica (Festa Literária Internacional de Cachoeira)
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