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O gol esquecido, de Mayrant Gallo

Mayrant Gallo
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"Ademir era negro. Feito da dor e do cheiro das senzalas multiplicadas em favelas e bairros erguidos sobre paus finos em alagados fétidos. Atrevido, ria branco dos defeitos dos outros. Dos seus também. Controlava a bola do mesmo modo que alguém movimenta os olhos, sem se dar conta, por um sutil e incompreensível comando que remonta aos primórdios da vida, no borbulhar dos primeiros pântanos. E havia momentos em que a bola e seus olhos, na vastidão verde, assemelhavam-se a um solitário planeta com seus dois satélites. A estranha órbita compunha-se da leitosa parábola rumo ao gol e do percurso de volta, ao meio de campo, por entre corpos adversários batidos e faces cabisbaixas, humilhadas.
– Ninguém para esse cara!
– Admirável Ademir! – teria dito Armando Nogueira, se o visse jogar"


"Assombrava-me a afirmação de que o que acontece já aconteceu. De que o presente foi, o futuro é, e o passado será. De que o que se diz já foi dito. Em suma: o que se afirma que vai ocorrer já ocorreu; apenas estamos nos lembrando do fato, que não passa de um porvir reincidente"


"– Um momento inesquecível? Não, nenhum no futebol, que, a rigor, é um esporte de canalhas, com traições, falcatruas, velhacarias, roubos.
– Nenhum, portanto? – insisti.
– O nascimento de minha filha – respondeu, de forma seca, liberto de qualquer emoção. E depois de uma pausa acrescentou:
– E, claro, a morte de minha esposa, oito anos mais tarde.
Ficamos quietos, constrangidos, estupefatos.
(...)
– E o gol inesquecível?
Sua resposta foi breve e áspera:
– Nenhum.
Mas logo em seguida se corrigiu:
– Talvez aquele de mão"


"(...) cor em demasia, movimento em excesso acabam por levar ao tédio, à vontade de variação, a noites em que se pede sono apenas, ou abandono (...) Esse era o seu temor: que ela se ligasse permanentemente a um sonho ou desejo logo satisfeitos, no curto tempo de um returno, quando o líder do certame, cinco ou seis pontos à frente, não chega a ser alcançado, e os condenados ao rebaixamento não conseguem escapar"


"Eu só tinha dezessete anos, fazia o segundo grau e praticamente me contentava em sonhar com as mulheres. Aquela havia sido a minha experiência mais profunda, literalmente. E eu não queria que fosse a última. Mas como dizer não à mulher que pela primeira vez nos levou para a cama?"


"Eles ficavam a manhã toda na esquina, falando de garotas e de futebol. O mais velho ainda não tinha dezenove anos, e o mais novo acabara de fazer dezesseis. Jogavam num time que se reunia todos os sábados à tarde e, esporadicamente, domingo de manhã. Nenhum dos rapazes trabalhava, e só dois estudavam. Uma vida repetitiva e circular, sem nenhuma perspectiva de mudança, tanto que um deles seria encontrado boiando no rio Guandu, e os pais nem foram reclamar o corpo, deixando que o Estado arcasse com aquele último conjunto de deveres. Foi um tio que, piedosamente, se encarregou de tudo, e o time inteiro compareceu ao funeral, a camisa oito sobre o caixão"


"O que o goleiro pensou naquele instante seria sempre um mistério, um enigma, como o era ainda para ele o branco daquele transatlântico a invadir a praia azul e iluminada de sua infância. Ele fixou a bola, atento ao movimento de pernas do atacante. Tentou adivinhar o momento do chute, a direção que a bola tomaria. Como no pênalti, o canto que o jogador escolhesse. Em vão. Foram segundos preciosos, nos quais o goleiro desceu ao inferno, e o jogador subiu ao céu. Raros eram os gols que em momentos como aquele podiam ser evitados. Só havia uma solução: o goleiro rogou a Deus que aquela bola beijasse a trave. E fechou os olhos.
Com isso, ele não viu a bola nem o gol: bastou-lhe ouvir que a torcida, extasiada, sem pensar noutra coisa, os transformou numa página de suas vidas"


"E então aconteceu: a bola viajou, desviou em sua cabeça e morreu nas redes. Quem o xingava um segundo antes foi abraçá-lo; quem ficara de boca aberta sorriu. Tinham dito que perderíamos em casa, e que isso sempre acontecia... Mas o que aconteceu mesmo foi o que jamais acontecia: gol de goleiro, e de cabeça! Foi a maior lição que aprendi em toda a vida: que a realidade, como uma moeda, tem dois lados, e que é nas coisas estranhas que está o sentido, talvez o segredo"


"(...) não é que o goleiro seja um cara estranho; o que ele faz é que é estranho. São dez no time fazendo quase a mesma coisa, e aquele outro, o goleiro, que faz exatamente o que é proibido a todos os demais"


"A guerra chegara a uma trégua, O front, quieto e em silêncio, convidava os passarinhos a voltar aos voos e as borboletas a ensaiar novas cores. Dois coelhos brancos, saídos talvez de um tempo remoto, sem desavenças nem disputa pela vida, deixaram a toca e percorreram por um momento toda a faixa de terra que separava um exército do outro. Lá longe, depois de uma pausa, continuaram a correr e a pular, até que desapareceram. Mesmo as guerras precisam de um repouso"


"Saiu sem se importar com o que fez, sem esperar apupos nem cartão vermelho, sem sequer cogitar que outros corajosos talvez viessem sobre ele. Quem teria sido? Dos três, qual se arriscaria? Ou fora um outro qualquer, saído de alguma daquelas mesas cheias de hipocrisia e escárnio? Logo era só um vulto – longe. Era a vantagem da noite: fazia-se qualquer coisa e nem mesmo se corria; a própria noite se encarregava de esconder quem chegava mais forte"



Presentes no livro de contos "O gol esquecido" (A Girafa, 2014), de Mayrant Gallo, páginas 37, 90, 14-15, 24, 40, 46, 64, 55, 52, 82-83 e 22, respectivamente.

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