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O inédito de Kafka, de Mayrant Gallo — Parte 01

Mayrant Gallo
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"(...) sempre tem alguém que faz antes de nós o que pensamos fazer"


"Ele era para ela como uma parede branca e lisa, um vaso de plantas num canto, um quadro sem cor e inexpressivo, comprado ao acaso e pendurado sem gosto numa sala igualmente sem gosto, alguém velho que move solitário as cartas de um surrado baralho, recluso à ensebada mesa de madeira de um vazio corredor de entrada, e por quem se passa como por um saco de entulho abandonado ao pé de um poste... Ele não a atrairia nem que fosse o último da espécie"


"Dois não podem ser um: não há número este redutível por si mesmo que dispense um agente; e o agente é a dor, ou o amor, a morte... Compreendi isso muito bem e, com a inabalável certeza de que não me arrependeria, decidido a não sofrer, a não levar tão longe o conhecimento do mistério, dei as costas para mim – reciprocamente"


"Era de certa forma pelo estado do veículo que estipulavam o preço. Muitos clientes reprovavam esse hábito, mas, uma vez que eles eram os únicos mecânicos disponíveis por ali, acabavam autorizando o serviço e, tomados de um receio incômodo, deixavam o veículo nas mãos dos dois e partiam. Em casa, porém, não conseguiam nem comer, quanto mais amar a mulher, acariciar os filhos. Daí, no dia seguinte, bem antes do prazo fixado, voltavam correndo à oficina e de longe ficavam observando, com ar receoso e de mistério, o carro, livre de duas rodas ou com a boca aberta, febril. Quando se convenciam de que tudo ia bem, retornavam para casa. Enquanto isso, entre as rodas ou dobrados sobre o motor, os dois amigos sorriam. E sem muita vontade, num abrir preguiçoso de lábios, um ou outro às vezes comentava:
– Mais um idiota"


"Ele estaria sempre disposto a ouvi-las para depois calá-las ou fazê-las gritar sob o ávido peso de seu corpo, apenas isso, o que era pouco, muito pouco mesmo, a oferecer à milenar clausura feminina"


"Quando gozaria com ele? (...) ainda não sentira nada, só um brusco avançar carnudo entre as pernas e um roçar e um gemer e um fluir morno e úmido, como todos os outros que experimentara (...) Cíntia se apaziguava só com a esperança de, em breve, por alguma sorte, seu interior vir a executar salientes pulos, e o grito escapar de sua boca, como um instantâneo e curto fluxo de dor"


"Há momentos em que inevitavelmente nos tornamos pedra, ferro, excremento, resíduo de uma matéria qualquer sem utilidade conhecida, e apesar de tudo agradecemos em silêncio que isso nos tenha acontecido"


"Pouco a pouco os outros caras foram chegando, se juntando a nós em torno da grande árvore. Alguns eram tão feios que acho que ainda tinham fome. Alguns eram só magros de fome constante, alguns eram só negros sem chance, alguns eram só pedaços de ontem, alguns eram só esses pontos sujos no pano branco que nenhum removedor consome... Éramos todos um pouco isso tudo e, para piorar as coisas, não tínhamos escrúpulos. Na primeira chance, se preciso, nos trairíamos. Na primeira chance amassaríamos o crânio de um, no meio-fio, por um punhado de arroz"



Presentes no livro de contos "O inédito de Kafka" (Cosac & Naify, 2003), de Mayrant Gallo, páginas 185, 144, 193, 163-164, 150, 137, 117 e 110, respectivamente.

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