Rodrigo Melo
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Passou dias e noites esperando, esperando, esperando pela mulher perfeita, pela vida ideal, por talento, jeito, ginga, clarividência, um destino bom, e que alguém, no meio da rua, ao notar-lhe passar, apontasse o dedo e dissesse: 'Ali vai um grande sujeito, este sim!'. Mas hoje sabe que não é um grande sujeito, apenas imaginou ser (...) Talvez lhe fizesse bem descer e circular um pouco pelas ruas, se misturando, quem sabe encontrando alguém. Desconfia, entretanto, que não há alguém e que se for, este apartamento também irá com ele – a sala, o cheiro que a cozinha e o quarto têm. E, além de tudo, ele tem medo: de não agradar, de agradar demais, da morte, da vida, tem medo também de não ser o que queria e de descobrir, tarde demais, que poderia ter sido o que quisesse: voltar no tempo, se pudesse"
"O tempo, de uma maneira ou de outra, acabava passando, da mesma forma como passavam as ruas e as janelas que eu investigava. Quem sabe a vida, minha e a das pessoas que eu via, se resumisse àquilo: a sombra dos prédios e o sol marcando o asfalto, as tardes sonolentas, uma curiosidade infantil, a melancolia dos lugares e dos dias"
"Ele está sozinho. Olha para o quarto novamente. Não há nada, a não ser o branco das paredes. Pensa que é como se estivesse dentro dum copo de leite ou qualquer coisa assim. Fica com isso na cabeça, que é uma mosca boiando num imenso copo de leite"
"O segredo de tudo, desconfia, está em acordar enquanto é tempo. Entender ou acordar, tanto faz"
"Longe, num canto afastado das arquibancadas, noto o velho gordo a me observar. Bebe dum cálice e duas mulheres lhe servem carnes e frutas. Por minha cabeça, a certeza de que um dia, não sei ainda quando, talvez ali, o matarei: enterrarei minha espada na sua barriga, sentindo-a entrar, dilacerando-o, e por algum motivo isso me deixará feliz"
"Tenho isso: na dúvida entre achar que algo está acontecendo ou não, sempre concluo que está"
"Pensa que tudo, à sua maneira, é uma fuga e que a cada segundo que passa fica mais difícil escapar (...) Se pudesse parar e voltar, teria mais chances que qualquer um. Mas nada para, nada volta, tudo é novo e ruim"
"Surpreso e culpado, concluí que todos naquele ônibus existiam de uma forma mais interessante e proveitosa que eu. Eles tinham buscas, metas – queriam viajar, ter filhos, ficar ricos ou criar animais de estimação (...) enquanto eu era um homem estranho e só, inacessível ao mundo, fechado em mim. De algum modo, nunca me sentira merecedor. Até hoje. Daqui a algumas horas, quando sair deste prédio, deixarei para trás, enterrado com a empresa, o homem que fui"
Trechos presentes no livro de contos "O sangue que corre nas veias" (Mondrongo, 2013), de Rodrigo Melo.
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