Pular para o conteúdo principal

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace — Parte 01

David Foster Wallace interferido por Mirdad


"Nos apropriamos de comidas de todas as culturas e crenças para fritá-las, servi-las em caixas de papelão e consumi-las andando"


"Uma teoria: as férias de verão de um Megalopolita da Costa Leste são literalmente escapes, fugas de – multidões, barulho, calor, sujeira, da estafa neural causada por estímulos em excesso. Daí os retiros extáticos na serra, em lagos espelhados, cabanas, caminhadas na floresta silenciosa. Ficar longe de tudo (...) conquistar alguma espécie de fuga do confinamento e dos estímulos – silêncios, paisagens rústicas que não se mexem, um voltar-se para dentro (...) No Meio-Oeste rural é outra coisa. Aqui você já está meio que longe o tempo todo. A terra é vasta (...) Horizontes em todas as direções (...) parques do tamanho dos aeroportos (...) E as fazendas em si são espaços imensos, silenciosos e quase totalmente desocupados: você não enxerga o vizinho. Sendo assim, o impulso das férias no Illinois rural se manifesta como uma fuga-para. Por isso todo o afã de se reunir fisicamente, se dissolver, se tornar parte de uma multidão. De ver algo além de campo, milho, TV via parabólica e o rosto da esposa"


"A multidão se move num único passo vagaroso, comendo, condensada entre as fileiras de quiosques (...) todos comendo escancaradamente, amontoados, vinte lado a lado, se movendo devagar, comprimidos, suando, ombros esbarrando, um ar de fritura de imersão condimentado com antiperspirante e Coppertone, um aglomerado de papadas (...) É uma grande massa pitoresca de humanidade do Meio-Oeste comendo, se esfregando, se embaralhando, se movendo (...) Talvez se possa concluir alguma coisa a partir do fato de ninguém dar sinais de sentir opressão, claustrofobia ou os olhos saltando da cara por estar confinado sem ar dentro da multidão interminável da qual todos fazemos parte"


"Está tão quente que nos deslocamos em vetores cambaleantes apressados entre as áreas de sombra"


"Vejo os dois funcionários do parque olhando para cima muito atentos, protegendo os olhos. O operador fica alisando o bigode, contemplativo. A inversão da jaula fez o vestido de Acompanhante Nativa cair por cima dela. Os dois estão obviamente comendo suas partes baixas com os olhos. O som de suas risadas é, literalmente, 'Ri ri ri ri ri'. Um espécime com menor sensibilidade neurológica provavelmente teria intervindo a essa altura e interrompido toda aquela prática grotesca. Minha constituição, quando submetida ao estresse, se inclina mais para a dissociação"


"'Na Costa Leste a indignação político-sexual é a diversão. Em Nova York, uma mulher que tivesse sido pendurada de cabeça para baixo e comida com os olhos reuniria um monte de outras mulheres e haveria um frenesi de indignação político-sexual. Elas confrontariam o cara que comeu a outra com os olhos. Ajuizariam uma ação. A gerência se veria envolvida num litígio custoso – violação do direito de uma mulher à diversão livre de assédio' (...) Acompanhante Nativa mata um mosquito sem nem olhar para o bicho. 'E naquelas bandas todas tomam Prozac e enfiam o dedo na goela, também. Deviam tentar simplesmente subir, girar e ignorar os babacas, dizendo Eles que se fodam. É o máximo que se pode fazer a respeito de babacas'"


"Sempre se pode confiar num homem com múltiplas canetas"


"Não que seja profundo, mas me impressiona, em meio aos berros e resfôlegos do porco, o fato de que esses agropecuaristas não enxergam seus animais como bichos de estimação ou amigos. Apenas atuam no agronegócio do peso e da carne (...) Posso imaginar o que os agropecuaristas pensam de nós enquanto falamos carinhosamente com os suínos: nós, Visitantes da Feira, não precisamos lidar com a tarefa de criar e alimentar nossa carne; nossa carne simplesmente se materializa na banquinha de cachorro-quente empanado, permitindo que separemos nossos apetites saudáveis de pelos, berros e olhos virados"



Trechos presentes no livro de ensaios "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo" (Companhia das Letras, 2012), de David Foster Wallace.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: Gipsy Kings

A “ Seleta: Gipsy Kings ” destaca as 90 músicas que mais gosto do grupo cigano, presentes em 14 álbuns (os prediletos são “ Gipsy Kings ”, “ Este Mundo ”, “ Somos Gitanos ” e “ Love & Liberté ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 14 álbuns participantes desta Seleta 01) Un Amor [Gipsy Kings, 1987] 02) Tu Quieres Volver [Gipsy Kings, 1987] 03) Habla Me [Este Mundo, 1991] 04) Como un Silencio [Somos Gitanos, 2001] 05) A Mi Manera (Comme D'Habitude) [Gipsy Kings, 1987] 06) Amor d'Un Dia [Luna de Fuego, 1983] 07) Bem, Bem, Maria [Gipsy Kings, 1987] 08) Baila Me [Este Mundo, 1991] 09) La Dona [Live, 1992] 10) La Quiero [Love & Liberté, 1993] 11) Sin Ella [Este Mundo, 1991] 12) Ciento [Luna de Fuego, 1983] 13) Faena [Gipsy Kings, 1987] 14) Soledad [Roots, 2004] 15) Mi Corazon [Estrellas, 1995] 16) Inspiration [Gipsy Kings, 1987] 17) A Tu Vera [Estrellas, 1995] 18) Djobi Djoba [Gipsy Kings, 1987] 19) Bamboleo [Gipsy Kings, 1987] 20) Volare (Nel

Seleta: Ramones

A “ Seleta: Ramones ” destaca as 154 músicas (algumas dobradas em versões ao vivo) que mais gosto da banda nova-iorquina, presentes em 19 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Ramones ”, “ Loco Live ”, “ Mondo Bizarro ”, “ Road to Ruin ” e “ Rocket to Russia ”). Ouça no Spotify aqui [não tem todas as músicas] Ouça no YouTube aqui Os 19 álbuns participantes desta Seleta 01) The KKK Took My Baby Away [Pleasant Dreams, 1981] 02) Needles and Pins [Road to Ruin, 1978] 03) Poison Heart [Mondo Bizarro, 1992] 04) Pet Sematary [Brain Drain, 1989] 05) Strength to Endure [Mondo Bizarro, 1992] 06) I Wanna be Sedated [Road to Ruin, 1978] 07) It's Gonna Be Alright [Mondo Bizarro, 1992] 08) I Believe in Miracles [Brain Drain, 1989] 09) Out of Time [Acid Eaters, 1993] 10) Questioningly [Road to Ruin, 1978] 11) Blitzkrieg Bop [Ramones, 1976] 12) Rockaway Beach [Rocket to Russia, 1977] 13) Judy is a Punk [Ramones, 1976] 14) Let's Dance [Ramones, 1976] 15) Surfin' Bi

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão