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Prefácio de André Setaro para o livro Nostalgia da lama, de Emmanuel Mirdad




Prefácio do livro de poemas Nostalgia da lama (Cousa, 2014), de Emmanuel Mirdad. O lançamento será em maio:


Os Espinhos da Existência
André Setaro

A poesia, linguagem, deve ser a expressão de um sentimento de mundo e ter uma singularidade expressiva na visão deste e das coisas. E Emmanuel Mirdad possui o poder de fazer emergir nos seus pequenos pedaços poéticos a conspiração das dores do mundo numa insólita manifestação que se constrói pela conjugação das letras.

Há, nos poemas de Mirdad, algo que lembra os hai-kais japoneses, uma espécie de fúria que procura, dentro de su'alma, cheia de espinhos, dar à luz as contradições de sua verve de poeta. Em seu livro de poemas, existe um depósito de idiossincrasias que solicitam que sejam poematizados, e Mirdad deixa que suas letras satisfaçam a interioridade angustiante, o vulcão atônico que rege o seu íntimo, que se manifesta em abundantes escarros de um ferino nômade.

Um exemplo que serve para exemplificar o vulcão mirdadiano:

Evolução

primeiro foi a rebeldia
depois o cansaço
por último a fuga
e agora os cacos

A rebeldia que, como um camaleão, se transforma em cansaço para depois fugir e, depois, finda a tempestade, reinar os cacos de si mesmo, ao que se poderia acrescentar: o kaos do autor. O que Mirdad oferece em Nostalgia da Lama é justamente isto: a rebeldia interior do autor através de cacos ou espinhos poéticos. Para Mirdad, viver é lutar, e a aventura da vida também deve ser exposta pelos espinhos da existência. Um leitor mais sensível aos tormentos mirdadianos talvez possa se espetar com suas diatribes transformadas em poemas.

Há uma anarquia, no entanto, nesse espírito rebelde, não fosse todo rebelde também um anarquista. Como neste quase petardo existencial:

Sete, catorze, 21

um espaço vazio na cama
a criança soldado surge
é assustador

Sobre ser um cavaleiro andante que vive a sua perplexidade cotidiana, Emmanuel Mirdad, com este estranho, espinhento, Nostalgia da Lama, faz com que o leitor tenha prazer na sua leitura. A obra, ainda que aparentemente despretensiosa, é densa e dotada de certa crueldade, que não é outra senão a própria crueldade da vida.

Salvador-BA

Comentários

André Setaro disse…
Gostei de me ler, caro e inesquecível Mirdad. Sei que você não gostou de "O homem que matou o facínora", mas isto, outra história. Obrigado pela publicação deste humilde e espinhento prefácio. Peço, com o coração nas mãos, que acredite: entre as pessoas que conheci na Facom, você foi uma das mais interessantes e inteligentes. Grande abraço
André Setaro disse…
Vou me aposentar em agosto.
Emmanuel Mirdad disse…
Se você tá me dizendo, meu amigo, eu acredito. E, também peço com a coração nas mãos, que entre os professores que tive na vida, você foi um dos mais interessantes, inteligentes e importantes. E o único que considero que havia um Mirdad A.S. e outro D.S. Ninguém me "alumiou" mais que a sua técnica singular em destrinchar o óbvio e apresentar outras dimensões possíveis. Eternamente grato, amado mestre!

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